A farra do pão

A farra do pão

Era sempre a mesma coisa. Às três da tarde toda a vizinhança fechava portas e janelas para amenizar o barulho ensurdecedor que vinha daquela casinha onde morava um casal com uma penca de meninos.

Embora todos se sentissem perturbados com aquela barulheira, nunca alguém ousara procurar os moradores para fazer qualquer reclamação. O tititi entre os vizinhos levantava várias hipóteses para explicar tão estranho procedimento. Alguns diziam que um dos meninos era médium e que o espírito baixava sempre à mesma hora, por isso os outros tentavam expulsá-lo batendo no pobre coitado do irmão, enquanto uns gritavam e outros choravam de medo.

Havia ainda a hipótese de que o pai pretendia formar um conjunto musical para aproveitar o dom artístico de alguns membros da família e, assim, arrumar trabalho para todos ao mesmo tempo e resolver os graves problemas financeiros por que passavam.

Houve quem comentasse que havia loucos naquela casa os quais sofriam o acesso sempre à mesma hora, momento em que tentavam quebrar tudo na casa e atacar os outros.

Por muito tempo a causa do fenômeno foi um mistério. Os únicos que comentavam com os moradores sobre o fenômeno eram as outras crianças. Alguma coisa grave, porém, impedia que os barulhentos revelassem tão bem guardado segredo. Notava-se neles uma ponta de vergonha toda vez que algum inocente tocava no assunto.

Os vizinhos passaram a observar melhor e descobriram que o tal fenômeno não ocorria quando a mãe estava em casa, o que raramente acontecia. Quanto à presença do pai, não se sabia se também interromperia a misteriosa façanha, porque ele nunca estava em casa àquela hora.

O que mais chateava a vizinhança era uma terrível coincidência. A tal barulheira sempre acontecia no exato momento em que o vendedor de pão passava. Como ele utilizava uma buzina para anunciar a sua passagem pela rua, muitas vezes alguns moradores deixaram de comprar pão por não conseguirem ouvi-la, tão grande era a algazarra naquela morada misteriosa.

Os vizinhos mais próximos resolveram se ater mais ao fato para descobrirem o mistério sem, contudo, terem de se expor. Descobriram, por exemplo, que antes de começar algazarra, sempre havia uma menininha na frente da casa. Tão logo ela entrava, a batucada e a gritaria ensurdecedoras começavam. Outro detalhe observado, era que antes do silêncio, sempre a mesma menininha aparecia. Tão logo ela entrava, a batucada e a gritaria ensurdecedoras paravam. Que segredo e que poder guardaria a pequenina?

Era preciso observar mais, trocar informações, cruzar dados. Resolveram pedir ajuda ao vendedor de pão. Ele não seria visto como bisbilhoteiro ou inconveniente, já que era seu ofício oferecer o pão de porta em porta. Poderia aproveitar para descobrir o que de verdade acontecia lá dentro. O vendedor, que também se sentia prejudicado naquele quarteirão, aderiu de pronto. Na casinha do barulho ele pararia por mais tempo, insistiria mais, tentaria olhar mais fundo, puxaria conversa.

Tantas tentativas quantas frustrações. Pelo menos se conseguiu um dado novo: quanto mais insistia o padeiro, em buzinar à porta da casinha do barulho, mais alto este ficava, até que aparecia a tal menininha, que o dispensava. Voltava para dentro, minutos depois aparecia na porta, olhava o padeiro que já ia longe, entrava de novo e o barulho cessava. De tanto verem tal cena se repetir, passaram a desconfiar de que o padeiro estava envolvido com o tal mistério e havia aceitado a tarefa só para despistar. Quem sabe ele tinha parte com o coisa ruim e a sua passagem por ali provocava o acesso de loucura daqueles destrambelhados? Uma coisa era certa. As investigações deixavam cada vez mais claro que o padeiro tinha alguma ligação com aquilo tudo.

Certo dia, cansados do mistério, os importunados resolveram tirar aquilo a limpo. Combinaram um ataque surpresa no momento em que o padeiro estivesse exatamente em frente à famigerada casinha. Assim, desmascarariam também o dito cujo. Foi o que se deu. Todos a postos. O Padeiro caminha lentamente pela rua empoeirada. A buzina costumeira parece anunciar o momento fatídico. O som se aproxima. aumenta também a algazarra. Buzina. Gritos. Buzina. Mais gritos e barulho de batidas em latas. Nervos à flor da pele. Medo. Expectativa. Buzina mais alta. Barulho mais alto ainda. Telepatia maligna dos infernos. No ponto. Portas e janelas se abrem. dezenas de pessoas saem em disparada. Enquanto alguns imobilizam o padeiro, outros saltam a janela semi-aberta da casinha e abrem a porta por dentro. A multidão adentra aquele espaço exíguo. Levam junto o suspeito. Passam pela pequena sala, ganham a cozinha, chegam ao quintal. A cena.

Três meninas de cinco, oito e onze anos batem furiosamente em latas vazias de querosene da marca Jacaré. Ao mesmo tempo, gritam freneticamente sons ininteligíveis. No meio da cena, um bebê de dois anos. Susto. Silêncio.

Todos se olham, tentando entender a situação. A menina maior vasculha o emaranhado de rostos. De repente, arregala os olhos e fixa-os no rosto desfeito do padeiro. Todos percebem aquele diferente olhar. Ela caminha na direção do suspeito. Está pálida. O padeiro apreensivo. Momento de revelação. Ela para à sua frente, olha-o de cima a baixo e pergunta: - A buzina, cadê a buzina? Ele enfia a mão no bolso lateral da calça e retira o pequeno instrumento de trabalho. Ao ver aquilo, dentro da própria casa, tão perto do bebê, a menina se assusta e começa a chorar: - Não aperta moço, não aperta isso. Façam o que quiserem, mas não apertem a buzina. Os entreolhares demonstravam nada entender. A menina aponta para o bebê ainda sentado em meio às latas amassadas: - Sabe gente, o som que ele mais reconhece é o desta buzina e a coisa que ele mais gosta no mundo é de pão. Não apertem a buzina. Não façam ele chorar.

Miguel Canguçu
Enviado por Miguel Canguçu em 17/02/2011
Código do texto: T2798431