O valor de um presente

O VALOR DE UM PRESENTE

Na manhã de 29 de setembro de 1966 acordei mais cedo. Ainda cambaleante de sono, peguei a minha escova de dentes, pedi à minha mãe que pusesse pasta, corri até o pote, enchi uma caneca de água, desci rapidamente a escada da cozinha e sentei de cócoras para fazer a minha higiene matinal. Fiz tudo muito rápido. Queria acompanhar meu pai ao café da manhã. Ele saía sempre cedo para abrir a “A Milagrosa”, uma venda instalada na Praça do Mercado, ponto de confluência de várias ruas, o que proporcionava algum movimento pelas pessoas que, pela manhã, saiam à procura de prover o seu desejum. Naquele dia eu não queria que ele saísse sem me ver. Quando cheguei na sala ele já estava terminando o seu café, mas ainda deu tempo de eu me sentar à mesa e olhar significativamente para a minha mãe. Como sempre, não precisou meia palavra para que ela entendesse. Olhou para o meu pai e disse: - Não se esqueça do que, combinamos ontem! - Ele sorriu e, dizendo que não se esqueceria, brincou com meus cabelos, beijou a minha mãe e saiu.

Nunca houve dia mais longo na minha vida. Foi difícil brincar, almoçar, esperar. A noite chegou trazendo meu pai de volta do trabalho. Depois de ficar um dia inteiro em pé e atender aos mais variados tipos de fregueses, especialmente para vender fiado, já entrou em casa tirando os sapatos e se escornando na espreguiçadeira para relaxar um pouco antes do banho. Ao ouvir o barulho da sua chegada, corri para a sala. Os próximos segundos teriam para mim o valor de um ano inteiro. Teriam, mas não teve. Tão logo me viu adentrar a sala, meu pai levou a mão à cabeça e disse: - Esqueci! - O meu semblante não escondeu a tristeza. Fui logo acudido por minha mãe que me levou para o seu quarto e, como só ela sabia fazer, me confortou com sábias e amáveis palavras, enquanto justificava o descuido do meu pai. Ele tivera um dia difícil com coisas banais, lidando com bêbados e maus pagadores. No meio de tantas situações desagradáveis, não conseguiu ter cabeça para uma atitude tão nobre. Ainda bem que não era a única oportunidade. Na próxima, com certeza, a tarefa seria cumprida.

Se aquele dia havia sido uma eternidade, o que dizer das semanas e meses que se seguiram? A ansiedade pela espera só era aplacada pela certeza de que, quando chegasse o momento, nada impediria o meu pai de fazer a sua parte. Ele havia me garantido pessoalmente, e eu confiava.

Assim, entre lembranças e esquecimentos, chegara o grande momento. Quando acordei o meu pai já havia saído. Minha mãe estava no córrego lavando roupa, e minhas irmãs cuidavam dos afazeres domésticos. A casa estava silenciosa como a rua, como o mundo. Alguns meninos da vizinhança vieram me convidar para jogar china. Parecia um dia como outro qualquer, mas havia algumas sutis diferenças, pouco ou nada percebidas pelos outros, mas profundamente sentidas por mim. Primeiro, era dia de São Miguel. Segundo, era a data ansiosamente esperada, regressivamente contada, tão longamente sonhada. Tentei fazer aquele dia parecer um dia comum. Não fora uma atitude pensada. Mesmo tendo consciência de que era o dia “D”, nem com a minha mãe teci qualquer comentário. Hoje fico pensando que talvez tenha sido uma maneira de me proteger contra uma possível segunda decepção. Se era isso, terá sido no nível do inconsciente. Conscientemente eu tinha a certeza de que aquela seria a minha noite. Ela traria meu pai e, com ele, a minha realização. Assim foi.

Eu ainda estava na bacia quando meu pai chegou. Eu havia tomado um banho rápido, porque aquele início de noite estava mais frio do que de costume e a água esfriava mais rapidamente. Enrolei-me numa toalha bem branquinha feita de saco de trigo e cuidei logo de me secar. A minha mãe já havia posto sobre a minha cama um conjuntinho de calção e camisa que ela mesma havia feito aproveitando retalhos de varais cores. Ao terminar de me vestir ela já estava dentro do quarto me chamando para ter com meu pai na sala. Aquele chamado soou como música para os meus ouvidos. Ela não fazia aquilo normalmente. Corri para a sala e lá estava meu pai com as mãos para trás escondendo alguma coisa. – Não te falei? Veja. Não esqueci. – Disse ele enquanto me entregava um embrulho feito em saquinho de papel dos que ele utilizava para pesar açúcar. Na venda havia em dois tamanhos: para um quilo e para meio quilo. O que estava à minha frente era do maior e estava bastante cheio, com a boca presa por um barbante. Cuidei de abri-lo para logo confirmar que meu pai havia cumprido o prometido. Fechei-o novamente e corri para o meu quarto onde cuidei de guardá-lo dentro de uma caixa onde eu mantinha meus brinquedos, alguns coquinhos, que eu substituía pelas chinas quando estas faltavam, uma grande quantidade de ossos, que estavam sempre se transformando em bois e vacas e um carrinho de madeira daqueles que se empurram com cabos de vassoura. Em seguida, voltei para a sala, abracei meu pai, minha mãe e minhas irmãs. O meu semblante não escondia a felicidade. A paciência havia demonstrado ser uma grande virtude. A espera havia valido a pena. Em meio àquela euforia, uma das minhas irmãs perguntou: - Ué! Você não vai comer a suas bolachas? – Ao que respondi: Não. Vou dormir com o meu presente de aniversário pelo menos uma noite. Amanhã cedo nós com’el no café.

Miguel Canguçu
Enviado por Miguel Canguçu em 17/02/2011
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