O ESPÍRITO MARIA INÊS
 
   Passava das 22:00 h. Chovia torrencialmente. O dia todo foi assim. Começou com uma chuva fina pela manhã e aumentou à medida que o tempo foi passando. Era impossível prosseguir viagem, além do mais eu necessitava descansar. Resolvi deixar a estrada e entrar naquela cidadezinha à margem da rodovia.
 
   Avistei na entrada da cidade uma pequena pousada e decidi que seria ali que eu pernoitaria. Parei o carro e saí sob a chuva entrando logo no saguão da pousada. Por trás de um balcão de madeira uma jovem me cumprimentou apresentando-me boas vindas. Pedi um quarto para pernoite e a jovem lamentou informando-me que a pousada estava lotada. Perguntei se havia outra pousada ou hotel na cidade e ela me disse que estavam todos lotados devido a festa da padroeira da cidade que estava acontecendo naquela semana.
 
   Insisti para que me arranjasse um canto qualquer onde eu pudesse repousar e me proteger da chuva até que amanhecesse o dia. A jovem ficou em silêncio por alguns instantes e logo a seguir me disse: “Senhor, temos um pequeno quarto desativado onde guardamos utensílios e alguns móveis sem uso. Entretanto existe lá uma cama de solteiro que, caso seja do seu agrado, posso arrumar com roupa de cama limpa, permitindo-lhe um descanso salutar”. Pedi que me mostrasse o tal quarto.
 
   O quarto era pequeno realmente. Havia lá alguns móveis e outros objetos conforme a jovem descreveu. Achei que com roupa de cama limpa poderia utilizá-lo. Concordei e a jovem apontou-me o corredor onde no final havia um banheiro coletivo onde eu poderia tomar um banho enquanto ela arrumava a cama.
 
   Ao retornar vi que ela havia arrumado e deixado o quarto mais acolhedor. Despedindo-se de mim a jovem retornou à portaria. Tranquei a porta e deitei-me na cama. Meu corpo estava cansado. Liguei o pequeno abajur sobre a mesinha ao lado da cama e procurei conciliar o sono. Vi pelo vidro da janela que ainda chovia forte. Virei de lado e procurei dormir. Entretanto, como tenho o hábito de ler antes de dormir, não conseguia pegar no sono. Mais não havia nada para ler. Havia deixado meus pertences no carro e não iria sair debaixo de chuva só para pegar um livro ou uma revista no carro. Procurei no quarto algo que pudesse ler e encontrei na gaveta da mesinha um livro com a capa e as páginas meio desgastadas. Abri e li escrito na contra-capa o nome da possível dona do livro: “Pertence a Maria Inês”. Tratava-se do EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, livro do qual eu já tinha ouvido falar mais que não conhecia. Comecei a folhear o livro e a achar interessante o seu conteúdo.
 
   A claridade tênue do quarto, iluminado apenas pelo abajur, me dificultava ler. Enquanto me esforçava para ler e entender o que lia, percebi um vulto em pé ao lado da porta a me olhar em silêncio. Assustado, perguntei: “Quem é você? Como entrou aqui?” Eu havia trancado a porta, então era impossível alguém passar por lá. Tratava-se de uma jovem trajando uma espécie de camisolão folgado até os pés, com mangas compridas, mal dando para ver suas mãos. Tinha os cabelos lisos e longos derramados sobre seus ombros e cobrindo-lhe os seios. Pude ver no seu rosto de pele extremamente clara uma expressão de angústia e na sua voz que me respondeu: “ Eu sou Maria Inês, e que faz você aqui no meu quarto?” Fiquei parado olhando para aquela estranha figura sem saber o que fazer.

   Notando que eu estava com o livro na mão, ela em voz sussurrada me pediu que lesse para ela o item 3 do capítulo 5. Procurei no livro e encontrei o tal capítulo cujo título é BEM-AVENTURADOS OS AFLITOS e o capítulo 3 falava de JUSTIÇA DAS AFLIÇÕES. Olhei para a jovem que parecia aflita por escutar a leitura e então comecei a ler.
 
   “As compensações que Jesus promete aos aflitos da Terra somente podem realizar-se na vida futura. Sem a certeza do futuro, estes ensinamentos morais seriam um contra-senso, ou bem mais do que isso, seria uma enganação. Mesmo com essa certeza fica difícil de se entender a utilidade do sofrimento para ser feliz. Diz-se que é para ter mais mérito. Mas, então, surge a pergunta: por que uns sofrem mais do que outros? Por que uns nascem na miséria e outros na riqueza, sem nada terem feito para justificar esta posição? Por que para uns nada dá certo, enquanto para outros tudo parece sorrir? E o que ainda fica mais difícil de entender é ver os bens e os males tão desigualmente divididos entre viciosos e virtuosos e ver os bons sofrerem ao lado dos maus que prosperam. A fé no futuro pode consolar e proporcionar paciência, mas não explica estas desigualdades, que parecem desmentir a justiça de Deus. Entretanto, desde que se admita a existência de Deus, só se pode concebê-Lo em suas perfeições infinitas. Ele deve ser todo poderoso, todo justiça, todo bondade, sem o que não seria Deus. Se Deus é soberano, bom e justo, não pode agir por capricho nem com parcialidade. As contrariedades da vida têm, pois, uma causa e, uma vez que Deus é justo, essa causa deve ser justa. Eis do que cada um deve se convencer: Deus, pelos ensinamentos de Jesus, colocou os homens no caminho da compreensão dessa causa, e hoje considera-os suficientemente maduros compreendê-la. Eis porque a revela inteiramente pelo Espiritismo, ou seja, pela voz dos Espíritos.”
 
   Acordei no dia seguinte e vi o livro ao lado do travesseiro. Deduzi que adormecera enquanto lia. Olhei o interior do quarto e não vi aquela mulher. Pensei que tivesse sido um sonho. Rapidamente me arrumei e desci para tomar café. Ao me aproximar do balcão para pagar a conta, comentei o ocorrido com a funcionária. Ela ficou me olhando em silêncio. Perguntei por que ela ficou surpresa e então a moça resolveu me contar a história daquele quarto.
 
   A cerca de uns oito anos atrás a pousada era de um casal que tinha uma filha, a ocupante do tal quarto. Em viagem para a capital onde a jovem estudava, pai e filha sofreram um acidente automobilístico vindo a falecer. A mãe escapou porque havia ficado para tomar conta da pousada. Desgostosa pela perda do marido e da filha resolveu por a pousada a venda, indo morar de vez na capital. Desde então, as pessoas que se hospedavam naquele quarto sempre contavam histórias de aparições de vultos, o que os faziam sair de lá em disparada. Desta vez foi diferente. Ela apareceu e pediu ao senhor que lesse para ela, além de falar seu nome.
 
   Após pagar a conta, entrei no carro e saí da cidade, dirigindo pela estrada deserta e com a vegetação ao lado ainda umedecida pela chuva da noite anterior. Depois de alguns quilômetros, ao olhar pelo retrovisor interno do veículo vi algo inscrito na sujeira do vidro traseiro que me deixou curioso. Parei o carro no acostamento e desci para ver o que era. Na poeira entranhada pela chuva no vidro estava escrito em letras disformes, provavelmente traçadas por um dedo, mais que dava para ler: “Obrigado por ter me proporcionado a paz de que tanto necessitava. Maria Inês.”
 
   Olhei para os lados naquela estrada vazia e senti uma inexplicável paz. Pássaros cantavam na vegetação próxima e um cheiro maravilhoso de plantas molhadas tomou o ambiente. Entrei no carro sentindo uma agradável sensação de que havia feito algo de bom para o espírito daquela jovem. Liguei o carro e segui viagem para mais um dia de trabalho.
 
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Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 02/04/2011
Reeditado em 02/04/2011
Código do texto: T2885513
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