040 - SARAPÓ...

Certa vez fui pescar lá pelas bandas do rio Paranã, estado de Goiás, com meus companheiros fui até um pequeno arraial pra comprar mantimentos e outros itens faltantes.

Em uma casa mistura de armazém, bar e restaurante, na varanda que defrontava com a rua descalça sentamos em toscas cadeiras de madeira e no esperar do almoço no prosear ficamos, foi se aproximando um cego que além do seu cajado trazia uma surrada e usada viola. Esticando as orelhas assuntava o nosso palavreado:

- Os sinhores não são destas bandas! São?

– Somos paulistas.

– Na certa possuidores de terras e gado nestas bandas!

– Somos apenas pessoas que não tem o que fazer e para refrescar a cabeça estamos pescando!

- Paulistas são todos ricos, é por isto que vivem di boa vida, pescando.

Sentido o cheiro da comida já servida no seco engolir arriscou:

- Se eu dedilhar minha viola e contar um pedaço da minha vida o patrão me paga um prato de comida?

– Qual o seu nome? O cego desconcertou, mas não se deu por perdido.

– Tenho nome não, só tenho apelido, me chamam de Sarapó. Ajeitamos o cego na nossa mesa onde sem cerimônia alguma se fartou, conversava tanto e comia outro tanto que das vezes engasgava e farelos do almoço voavam por sobre a mesa, tudo de bom tamanho a sua prosa era tão agradável quanto ao almoço que nos serviram. Após um café bem quente, bem amargo e bem doce... Delicioso...

O cego no esforço de agradecido com uma voz diferenciada, mais firme, foi contando a sua história:

- Sou de uma terra distante no norte do estado de Goiás, região mais conhecida como bico do papagaio, margens do rio Araguaia minha família é possuidora de pedaços de terras e cabeças de gado...

De repente encostou uma caminhonete toda empoeirada, dela desceram dois homens mais empoeirados, que tirando os chapéus respeitosamente a todos cumprimentaram e foi lhes informado que de comida só tinham algumas sobras, eles no retrucar da fome apertada comeriam o que tivesse.

No esperar no silêncio no escutar ficaram e na cadência da toada o cego voltou a declamar... Um dia fui chamado para ajudar um gado apartar de um rico fazendeiro nas vizinhanças, no corre corre bois escapulindo pra todos os lados depois de muito esforço levamos o rebanho para o curral nas proximidades da sede da fazenda, foi quando a minha desgraça prenunciou, uns lindos olhos azeitonados me incomodavam pois sempre estavam olhando pra mim, e fui saber a ser a filha do fazendeiro.

Na hora do almoço no varandão que circundava toda a sede da fazenda, a moça passava e sempre sorrindo timidamente me servia, meu coração não mais cabia dentro do meu peito. Nos dias que se seguiram o prosiá entre nóis dois despertou a inveja de outros companheiros, que no inventar e aumentar foram matraquear no ouvido do patrão que sua filha estava de namoro com o peão de boiadeiro... Logo logo fui chamado, desconfiado ouvi o capataz dizer que não mais precisavam do meu serviço pois os trabalhos estavam no findar. Na volta pra casa de meus pais a estrada ficou estreita, cumprida de tristezas desmedidas, da moça não esquecia. Recebi um bilhete dela recheado de saudades, noutro dia ela estava no arraial e todos os meus dentes se mostraram pra ela tamanha foi a minha alegria em revê-la.

Na festa de São João, ela de mim se aproximou e não mais se apartou e disse que só haveria uma jeito da gente ficar juntos, seria fugindo pra bem longe, e depois ir vortando aos poucos, isto ela contou pra sua prima, que contou pro seu namorado, que contou pro pai da moça minha amada. Comendo batata doce cozida no borralho e tomando quentão dois grandes amigos meus, peões da fazenda me convidaram para caçar pacas.

No outro dia cada um montado em seu cavalo seguimos pelas trilhas até os ermos onde sempre se caçava, de repente senti uma violenta pancada na cabeça que fui ao chão desacordado, ao recuperar o sentido já estava todo amarrado jogado na carroceria de uma velha caminhonete que rodou a noite toda para o bem longe no escondido. Dia amanhecido, em um lugar totalmente desconhecido fui jogado com toda violência no chão, um dos peões sacou do revolver para acabar com minha vida, quando o outro se condoeu:

– O Homem já esta com a cabeça quebrada, amarrado e amordaçado vamos deixar ele aí que a onça pintada no escurecer vem pra comer, e nossas mãos ficam livres deste sangue!

– Mas o patrão pediu que a gente fizesse o serviço completo!

Depois de uma breve discussão o que tinha o revolver na mão, sacou de um longo punhal agarrando a minha cabeça com uma mão e com a outra apunhalou meus olhos, na mordaça mordi na dor desmaiei. A dor acalmada, a consciência recuperada, soluçando não tentei forçar o nó de porco que me laçava se assim fizesse mais ele apertaria, no sol escaldante o suor merejava por todo o corpo, lentamente fui escorregando um punho pelo nó, sempre carreguei uma pequena peixeira dentro do cano da minha bota e de tanto pelejar a faca consegui pegar e as amarras cortar.

Vento ameno soprando noite avantajando e os urros da onça pintada meus ouvidos estrondavam pavor e desespero, tateando como se no escuro fosse uma árvore encontrei e para o alto fui grimpando levando no corpo enrolado todas aquelas cordas. Nas altas horas da noite as onças unhavam no tronco da árvore no esforço para me alcançarem. O pavor tomou conta de mim, clamei por Deus, pela minha Mãe, pelo meu Pai, meus irmãos, pela minha amada...

Tremia tanto que quase caí lá do alto, foi quando me lembrei das cordas e com elas me amarrei em um galho bem grosso no acalmar sosseguei. O sol lentamente se levantando a me aquecer no abraçar, ainda esperei um bom tempo para descer, a garganta queimando de tanta secura, pelos baixios fui escorregando, agradeci a Deus ao ouvir borbulhar de águas correndo, entre tombos e arranhões cheguei à margem do riacho e me deitei, depois de tanta água beber me pus a lavar os buracos dos meus olhos furados onde a mosca varejeira não cansava de pousar por causa do cheiro de podridão que o ar empesteava.

Como uma sucuri deslizei para dentro do riacho e me deixei levar... A fome destruindo minhas entranhas, pedaço de pano da manga da camisa amarrei sobre aqueles buracos agora desguarnecidos de olhos no espantar das moscas... Em remansadas águas parei, engatinhando avancei por entre capins e espinheiros cegamente no tatear sem um rumo a nortear, desesperei, cai, frouxo, enfraquecido pela fome e pela dor dos meus olhos furados... Que me perdoa o Senhor Deus, desejei a morte, clamei pela morte, entre soluços maldisse a minha sina, chorei, como chorei no amaldiçoar da minha fortuna...

– Moço! O que fais aqui nesta ermidão, onde só existe cateto, macaco, e onça pintada?? Contei do acontecido, ouvi limpar de narizes na piedade em lágrimas escorridas.

– Agradeça ao Senhor Deus pois a gente é caçador e se perdeu nestas matas e veredas no acaso aqui chegamos, agradeça! – Era o So Geromão, o dono deste armazém, e o So João das cabritas, eles e suas famílias e todos os amigos deles, cuidaram de mim, mataram a minha fome, esta é minha história, esta é a minha dor.

– Paulista você pode até não acreditar no que eu disse, mas toda essa a gente daqui da testemunho do acontecido.

E aquele homem que chegara por último na caminhonete num salto veio abraçar o cego...

– Deus seja louvado sou lá da terra da sua gente, você vai embora comigo, seu pai o Senhor Tertuliano da Veiga, conheço a moça que você se apaixonou é a Esmerarda Marthias, filha do Alcino Mathias, e ela ainda não casou, mas já esta de casamento marcado, lá correu o boato que na caçada uma onça pintada te estraçalhou e seu corpo nunca foi encontrado!!

– Moço! Num vou embora não, daqui só saio na companhia de meus pais, meus irmãos, minhas irmãs, num to lembrado do Senhor!

– O seu apelido é Sarapó, não é? Pode confiar, sou amigo de sou pai é que você não esta lembrando.

– Paulista não quero ir não, to tendo arrepios de medo!

Num repente seu Geromão tirando o revolver da cintura, deu um murro com toda força no balcão:

- O cego só sai daqui se quiser, e ele já disse que só sai em companhia da sua gente. De todos os lados iam surgindo matutos com imensos facões. Fez um silêncio amedrontador , no imediato agi:

- Meus amigos todos nós queremos a felicidade do Sarapó, o amigo aqui ta cheio de boas intenções, é amigo da família do Sarapó, ele segue sua viagem e da a notícia aos pais, e eles virão buscar o Sarapó! Todos concordaram balançando a cabeça, ainda assim o fazendeiro goiano acudiu:

- Ninguém vai acreditar que o Sarapó está vivo ainda mais tão distante aqui nas bandas do rio Paranã, como é que vou provar que ele esta vivo? No imediato busquei uma máquina fotográfica que estava na caminhonete, cujo filme de trinta e seis fotos em quase nada usado.

Fotos foram tiradas do Sarapó, agora já de óculos escuros presenteado, mais de vinte fotos o fazendeiro goiano a toda pressa partiu levando o filme para revelar na primeira oportunidade, fotos documento que Sarapó está vivo. Após mais alguns dias de pescaria, arrumamos a nossa traia e partimos sem antes passar pelo arraial para de todos despedir e deixamos tudo que se podia ser aproveitado pela aquela gente sofrida.

– Paulista! Leva a minha viola como recordação, nunca mais a gente vai se vê!

Por mais que negasse a viola aceitar, seu Geromão tomando a viola do cego dentro da caminhonete a acomodou. Abraçando a todos no despedir, o cego engasgado não cansava de dizer que nunca mais a gente ia se ver.

– Sarapó! A gente vai se encontrar em dias de festas!

Mas já se passaram meses e notícia alguma a borbulhar, deixei lá nossos endereços, estranhamente tudo mudo e calado deu preocupação, a viola na minha sala adornando, quando o telefone tocou e insistiu, meu irmão mais novo no atender disse:

- É pra você, é de muito distante, lá do norte de Goiás!

– Deus seja louvado! Com certeza é o Sarapó!! (este causo não termina aqui)

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 18/04/2011
Reeditado em 11/01/2012
Código do texto: T2917144
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