A difícil escolha da profissão

Eu ainda cursava o ensino médio quando muitas vozes na família começaram a me “convencer” a cursar odontologia.

Quando eu perguntava por que, a resposta incongruente: Porque você tem cara de dentista.... E dentista lá tem uma cara específica?

Eu estava meio indecisa (para não dizer perdida) então resolvi acatar à sugestão. De imediato comecei a me imaginar em um jaleco branco, luvas de látex e máscara sobre a boca, não porque eu fosse influenciável...., só porque sou de fácil adaptação.

Não tinha nem idéia de como seria o trabalho, então resolvi fazer uma espécie de estágio em um consultório de um dentista conhecido do meu pai.

O dia em que iniciou meu estágio como auxiliar foi marcante, mesmo sem necessidade já me vesti de branco dos pés à cabeça. E prendi os cabelos em um coque elegante, me sentindo mais importante que o próprio dono da clínica.

Acompanhei atenta o trabalho das demais assistentes e de todos os dentistas da clínica. Anotei o máximo que pude os nomes complicados dos utensílios e suas utilidades. Acompanhei esterilizações e montagem dos consultórios para novos atendimentos.

Estava sendo muito interessante, mas o que eu não via a hora mesmo era de botar a mão na massa, ou melhor, de me entregar à arte de vasculhar as bocas humanas, analisar dentes amarelados, hálitos delatores e línguas esbranquiçadas.

O que para os outros poderia parecer nojento, para mim se tornava uma razão de vida.

Quando chegou a hora de acompanhar o doutor Eduardo em um procedimento delicado de canal fiquei eufórica. Minha função seria aspirar a saliva de um cliente enquanto o doutor trabalhava naquela boca.

Posicionei o equipamento de sucção na parte interna da bochecha do homem barrigudo, cuidando para não atrapalhar o trabalho do especialista e para que a boca escancarada do cliente não enchesse de saliva.

No começo foi tranqüilo, até percebi o dentista relaxar os músculos ao perceber que eu desempenhava minha tarefa simples com desenvoltura, mas quando comecei a sugar a língua do pobre, senti que as coisas poderiam mudar.

O doutor meio carrancudo pediu que eu deixasse o aspirador e passasse o amálgama para que ele restaurasse a cavidade. De pronto estiquei o braço para a bandeja apanhando a massa prateada e derrubando no chão algumas brocas que repousavam sobre um guardanapo ao lado de um recipiente de vidro, que também balançou, mas não chegou a cair.

Sob o olhar atento do dentista e principalmente do paciente, larguei o recipiente com a massa cinzenta e me abaixei para juntar as brocas, engatinhando por baixo da bandeja e da cadeira onde o homem estava deitado com a boca escancarada, segui me esticando aqui e ali apanhando cada objeto minúsculo.

O doutor mesmo apanhou o amálgama enquanto levei as brocas que consegui juntar para a pia. – Que sufoco. – Pensei ao me lembrar da minha já conhecida falta de coordenação.

Voltei para minha posição, imaginando que o doutor me queria longe dali. Percebi que a luz estava mal posicionada, então levantei o braço para puxa-la, mas errei a mira e acabei pegando o fio do equipamento, desligando-o da parede, quando levantei apressada para religar, tropecei na bandeja que dessa vez virou deixando cair tudo o que havia em cima.

Quando o procedimento terminou o cliente deixou a sala, não sem antes me lançar um olhar recriminador. O dentista não disse nada, senti-me aliviada por imaginar que ele não percebera meus modos um tanto atrapalhados.

A notícia chegou pela assistente chefe, que me chamou e pediu que fosse para outro consultório para ajudar o doutor Carlos Henrique, o dentista mais novo e o que fazia os procedimentos menos complexos.

Obediente e um tanto decepcionada comigo mesma, sentei-me ao lado do jovem doutor torcendo para que minhas mãos obedecessem aos comandos do meu cérebro.

Uma mulher alinhada e muito bem educada adentrou ao consultório inflada como uma bexiga de festa infantil. O rosto vermelho e o sorriso amarelo deixaram claro o medo que sentia daquela cadeira.

- A senhora está bem? O dentista perguntou de forma amável.

- Vou ficar. Ela respondeu trêmula. – Tenho pavor de dentista, mas fiz um tratamento à base de hipnose e hoje não sofro mais, quando me sento aqui eu durmo.

- Dorme? – Perguntei me metendo na conversa que não tinha nada a ver comigo.

- Isso mesmo, esse é o único jeito de não sofrer.

Sem graça me calei, tentei relaxar os músculos e me concentrar no procedimento, que seria muito simples, uma limpeza e destartarização dos dentes, remoção de placa bacteriana, manchas e tártaros, com aparelho de ultrasson e jato de bicarbonato. Muito simples. Depois um polimento dos dentes e a aplicação do flúor.

Torci para que tudo corresse tranquilamente, sem esbarrões e quedas de equipamentos.

A paciente deitou e como que por milagre dormiu, chegou a ressonar baixinho. Sorri um tanto encabulada para o dentista de olhar simpático, que todos chamavam de Caíque.

- Ela dormiu mesmo. - Ele brincou.

- Pelo visto. - Assenti.

- Melhor assim.

Percebi que o doutor também tentava relaxar os músculos, chacoalhando os braços e as mãos. Imitei seu gesto relaxante e me preparei.

- Vamos começar. Caíque disse, virando-se na minha direção muito rápido para que eu pudesse evitar a colisão das nossas cabeças.

- Desculpe. - Disse sem graça. Eu apenas sorri.

Estiquei para ele os óculos e quando foi apanhá-lo não calculou bem a força do movimento, batendo com força no equipamento que voou longe.

Ambos rimos. Apanhei outros óculos para ele, feliz por ver que mesmo descoordenado ele conseguira se formar e trabalhar na área.

Puxei a luz, aproximando-a do rosto da cliente, mas não o suficiente, ele esticou o braço e puxou mais, batendo com o pedestal na minha cabeça.

- Desculpe.

- Tudo bem.

Já estava até me sentindo bem por não ser a pessoa mais atrapalhada naquele ambiente, apesar de estar com pena da pobre mulher. – Ainda bem que ela vai fazer só uma limpeza. – Pensei temendo pela integridade física da boca da moça.

Para finalmente dar início ao procedimento, o doutor respirou fundo, soltou os braços e em um movimento forte puxou aquele banquinho no qual se sentava (cujo nome ainda não aprendi). Já de início percebi que o movimento estava vigoroso demais e não deu outra, a força empregada foi muito além da necessária, fazendo-o colidir com a cadeira odontológica, desequilibrando-se e caindo sobre mim, que fui ao solo juntamente com ele e todos os utensílios que estavam preparados para o procedimento.

- Opa. - Eu disse muito sem graça.

- Eu sabia que isso não daria certo.

- Não foi nada, eu troco tudo.

- Não é isso. – Ele fez uma pausa desolada. – Nunca quis ser dentista, sonhava ser advogado, sempre me achei atrapalhado demais para esse tipo de trabalho mais minucioso, mas como minha família toda sempre disse que eu tinha cara de dentista....

- Tem coisas para as quais não adianta ter cara. – Me espantei com a minha própria voz dizendo aquilo. - E mais, uma profissão é algo importante demais para que se eleja com base na opinião dos outros. – Caíque sorriu e percebi em seus olhos que ele pensava exatamente o mesmo.

Elayne Sampaio
Enviado por Elayne Sampaio em 19/04/2011
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