058 – O BEIJO DA PIAPARA...

Tempos idos quando o Rio Grande era muito piscoso, no município de Igarapava-sp, na fazenda Cana Brava que ainda hoje é propriedade da Fundação Sinhá Junqueira, fazenda esta que margeia por um bom trecho o referido rio, era um dos melhores lugares para se fisgar uma piapara.

Nesta região o barranco do rio era uma seqüência de tablados ciumentamente guardados pelos seus proprietários. Os pescadores sabem que a grandes piaparas costumam aproveitar o calor das águas da madrugada para se alimentarem, e que os meses frios sempre eram os melhores para fisgá-las.

Mês de julho, um frio de rachar o cano, lá estávamos nós batendo o queixo naquela friagem, mas todos no mais absoluto silêncio ansiosamente na espera que uma piapara agarrasse no anzol, mas o amanhecer além de friorento era um dia de muito azar.

Um rapaz não suportando o frio... Cada tablado tinha uma passarela apoiada no barranco...

Esse rapaz ao sair do seu tablado na passarela escorregou e caiu dentro do rio.

Pronto!

Acabou a pescaria, o naufrago no desespero se agarrou em um bambu e após muito esforço e barulho conseguiu sair do rio.

Meu pai homem de pouca paciência exasperou:

- É o caralho, já estava ruim a pescaria, agora acabou de vez! Outras vozes:

- Deveria ter morrido afogado assim daria sossego. Pra todos os lados ouviam reclamações, o rapaz se desculpava, tremendo de frio pedia insistentemente um gole de pinga para esquentar, pinga na barriga vazou numa velha perua kombi.

No tablado ao meu lado um pescador não abria a boca, era um mecânico que nas horas vagas pescava, ou melhor, talvez fosse um pescador que nas horas vagas trabalhava como mecânico, o dia já clareando quando num repente ele começou a falar:

- Óia... Óóia... Óóóia!! Tem um peixe mamando na minha isca.... Ohhh!!...

O peixe sentindo a ponta do anzol arrancou violentamente é o nosso amigo ferrou o bruto...

Todos pararam para assistir aquela luta:

- Olha lá, essa é das grandes esta indo rio acima!

– Piapara quando coloca a linha no lombo e vai rio acima é das grandes!

– Seguuuura peão!!!

O Mecânico em pé sobre o tablado maneirosamente ia dando linha e recolhendo linha e mastigava sem parar, o que tinha dentro da boca não ficamos sabendo, alguém correu até seu tablado retirou da água aquela corda onde fica amarrado o trato, normalmente espigas de milho, sacos de cebolas com milho cozido, farelo, quirela, sangue bovino... Atrativo maior para piapara não tem!

Depois de muitos vai e vem... Finalmente o piaparão se entregou, prancheou, linda, espetacular, deveria pesar entre uns cinco a seis quilos...

O Mecânico agarrou o peixe com todo cuidado e carinho... Em pé mostrava o troféu a todos. Ah! Aí o Satanás resolveu a participar também daquela folia, inebriou o Mecânico que já garganteava imensas catigurias e este querendo aparecer ainda mais, foi roçando a sua boca na boca do piaparão, gritou:

- Coisa fofa! Dá um beijo no papai!

O piaparão ao sentir o contacto dos lábios do mecânico, atracou uma mordida com tal ferocidade no lábio superior do infeliz que assustado na dor insuportável deixou o peixe cair sobre o tablado, e com o pé aloucadamente tentava imobiliza-lo, pois as suas mãos inutilmente tentavam conter sangria dos seus lábios, sangue que já escorria pelo peito afora, inesperadamente o piaparão se debatendo no esforço último dando rabanadas deslizou pra dentro do rio.

Ohhhh!

Foi geral a exclamação, o Mecânico em seu desespero ainda tentou agarrá-la pelo rabo, mas já era tarde, mole mole, exausta e tonteada a piapara foi nadando um tanto de lado para o meio do rio e quando se recuperou deu uma bela rabanada na superfície da água e desapareceu. O nosso azarado Mecânico foi direto para o hospital onde levou mais de deis pontos no ferimento.

Dias depois...

Madrugada fria...

Lá estávamos todos nós, inclusive o Mecânico...

Quando alguém pegava um peixe, a gente logo escutava:

- Coisa fofa!! Dá um beijo no papai!!!!

No começo o mecânico ficava de cara fechada, resmungava, mas depois se conformou e até dava belas gargalhadas, repetindo:

- Coisa fofa! Dá um beijo no papai!!!!!!!

Vida dura é a de pescador...

Em minhas andanças por estes rios do Brasil já vi muitas tantas coisas, vi trombada de canoas, já vi um pescador descarregar seu revolver no motor da sua canoa, porque este afogava a toda tentativa de subir uma corredeira, mas nunca vi um beijo igual aquele, tão voluptuoso, tão sanguíneo, tão dilacerante... Inesquecível...

Hoje, isto é tudo o que resta, recordações e saudades, inaugurada a hidrelétrica de Igarapava-sp, o lago que se formou afogou nas suas profundidades aquele paraíso...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 16/05/2011
Reeditado em 15/05/2014
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