SERTÃO MEU - GERAES

Não era uma vez, contudo os bichos ainda falvam... Então o Engenho Velho regulava com outro arraial qualquer, perdido nete sertão de deus e do diabo. Lugarzim com trinta e poucas casas mal se repartindo entre a pracinha em forma de ferradura, e uma rua torta que lhe bordejava subjacente. Visto das nuvens, caso não desaparecesse no cerradão, o vilarejo houvera que guardar a figura bizarra de cobra sucuri - enlaçada no cangote dum marruás.

Na barriga do Largo, assapada qualtalmente galinha de pinto pressentindo gavião, a igreja espreitava os confins. Cruz de vinhático no cimo do torreãozinho; paredes de adobe desaprumadas nos baldrames; portas gemendo nos gonzos; e, até o campanário de janelinhas banguelas... Tudo realçando o aspecto vetusto da construção, fincada ali nos antigórios por degredados da Coroa, em pagamento de promessa pelo perdão de El Rey.

Meia centena de passos adiante se plantava uma gameleira matronal - despropósito de árvore que doze homens juntos não abarcavam -, ensombrando e assombrando o povoado. "-Temeridade! O pau onde o Cujo delibera suas reinações malignas, bem nas goteiras do santuário!" Resmungavam os devotos, batendo na boca. Mas em vão, porque nos dias de soalheira não havia refrigério melhor para a cavalada resfolegante, que a sombra benfazeja do pé de pau.

O contorno da praça principiava com a farmácia do Pacheco, casarão de muitas janelas e portas na frente, guranecido por um passeio de pedras, em três lanços, ordinariamente adotado pela fazendeirama graúda em planta e gado, como asssento nas prosódias à boca da noite. Na outra banda estabelecia-se o Guido, com seu empório de estiva e armarinhos. Traquejado no balcão o vendeiro não desleixava. Suas prateleiras e tulhas abarrotavam-se com de um a tudo! Eram ferramentas, cachaça, tecidos, cereais, munição, sal, e mais um vasto sortimento de burundangas muito ao agrado da meninada.

A casa de escola, na concha do Largo, vizinhava com residências mormente habitadas em dias de missa e o chafariz - que era uma cabeça de vacum talhada na rocha, noite e dia vertendo água pelas ventas. Defronte, um quadro de grama servia de quarador para as lavadeiras, enquanto fornida moita de bambus, como paliçada, protegia os varais dos redemoinhos levantados por capetinhas pirracentos. Meia-noite velha, vergado pela ventania, tinha quem cismasse ouvir o bambuzal - com voz roufenha de garça boiadeira - repetindo os segredos murmurados pelas mulheres na lida, para desassossego do povoado inteiro.

Quase nas franjas do cerrado a rua lambia a pracinha, emborcando-se depois. Cafuas de pau-a-pique e sapé, sem alinhamento preciso, guardavam em comum o formato de arapuca e um barrado vermelho na tabatinga, devido aos respingos das goteiras. A moradia mais retirada era o rancho do sô Quim, bem dizer debruçada no córrego do Lava-pés. Decorrente a seca um mijo d'água chinfrim, que o povo - vindo daqueles sítios para o Engenho - a propósito adotava para banhar as pontas, só então sovertendo os pés nos calçados. Invernou que fosse porém, o riacho regurgitante desconhecia barrancos.

Sô Quim, camarada rasgador tava ali. Conehcia o sertão como poucos. Fora vaqueiro dos mais batutas, que já pisaram naquelas redondezas. Criação arribada que ele não tangesse no laço, campeando semanas a fio no mato? Tinha nenhuma pra contar a estória, não senhor! Mas com os janeiros lhe enrilhando a pele e a carapinha esbranquiçada que nem paina madura, o tino e a destreza do crioulo viravam causos. Bom cristão - tanto prestimoso nas benzeções de gente e bicho, quanto no grito com a tralha, acontecendo de algum carro de boi ficar atolado no leito movediço do Lava-pés; sua voz, então, mais parecia um aboio, quase plangente, remedando tristezas.

Trabanda, a estrada aprumava por um toperote íngreme, flagelo de carreiros e candeeiros, chamado Quebra-canzil, contornando o cemitério. Do lado de fora do muro de pedras, um cruzeiro de jacarandá - com os instrumentos da paixão entalhados em relevo - atraía preces peregrinas: fosse pelo descanço de almas amigas, fosse pela chuva no rabo da seca. Não poucos caminheiros, entretanto, passando ali em desoras, muita vez embargavam o passo, cismados com as sombras das velas bruxuleantes, ao pé do madeiro, projetadas fantasmagoricamente na escuridão.

Um capão de mato virgem - refúgio de boa caça - e, coisiquinha além, o caminho margeava a fazenda das Aroeiras, já de costas pro cerrado, principiando o baixadão. O terreno cambiava-se de vermelhovivo para cinzentoclaro. Jatobás e cagaiteiras cediam lugar aos buritis das veredas. A vargem multiplicando-se descaía por lonjuras, até onde o verdeanil da terra e do céu se fundiam para formar a aba do mundo. O vale humoso a se perder na planura, parecia ir buscar o rio Picão. As árvores deixadas para ensombrear-lhe os barrancos acompanhavam seus meandros caprichosos, fazendo ele figurar uma serpente descomunal, estendida preguiçosamente no chão moreno dos baixios.

Era um mimo sem paga cruzar por ali, vesprando as águas. O gado tangido das palhadas demandava querencioso o cerradão. Arados e enxadas revolviam as socas, numa labuta sem tréguas. Gentama tocando roça... Meados de setembro, feijão e milho nascidinhos - verdeverdes. Sobrava palmo de chão sem cultivo, naquela quadra de mundo? Nhor-não! Anos entrando e saindo, e o mesmo farturão nas colheitas. Por toda a safra os carros de bois ninavam o sertão com suas cantigas dolentes, impregnando todo-o-mundo com laivos daquela sutil melancolia própria deles. "- Deus deve morar de-vera, nalgum buriti destas nossas veredas.", era mestre em teologar o coronel Belarmino Rodrigues, das Aroeiras.

NOTA: a quem pergunte pelo meu 'sumiço' do Recanto, deixo como amostra grátis o primeiro capítulo da novelinha rural (meio fantástica), a que me tenho dedicado ultimamente. Obrigado a todos pela leitura.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 19/10/2011
Reeditado em 28/06/2012
Código do texto: T3286144