O velho capoeira
Quem passava naquela rua não tinha motivos para parar defronte aquele casebre de tijolos assentados com barro, sem reboco ou forro na poeirenta Vila do Cobre.
Na frente da humilde morada, um homem moreno, vestido com calças sujas de fuligem da cana queimada passava o pé descalço nas costas de um vira lata que brincava de morder-lhe os dedos.
Na pequena sala, repousava o berimbau pendurado, porém sem embodocar, que era pra não viciar a biriba.
Mestre Adão pegou o berimbau, esticou o arame, arqueou o pau de biriba, encaixou a cabaça e começou a afinar o instrumento com pequenos toques de vareta no arame esticado.
De repente deu uma série de repicados e começou a tocar. O toque era o São Bento Grande de Bimba.
Logo dois moleques apareceram correndo e se colocaram frente a frente, cada um se benzeu do seu jeito e começaram a gingar e desferir pernadas. Enquanto um jogava o pé na direção do rosto do adversário, este se esquivava e lançava outra pernada buscando o corpo do oponente, que se virava para "sair fora".
Nisso foi chegando mais gente, alguns adolescentes formaram uma roda e logo o pandeiro começou a marcar o toque do berimbau.
A roda então ganhou força e os movimentos foram ficando mais rápidos e fortes.
O clima era de atenção e o Mestre entoava uma ladainha com uma quadra corrida onde se cantava o seguinte:
- Manoel dos Reis Machado
- Ele é fenomenal
- Ele é o Mestre Bimba
- Criador da Regional...
- Capoeira!
- É jogo praticado na terra de São Salvador...
O jogo começou a tomar contornos diferentes, o berimbau acelerou e os golpes começaram a ficar mais rápidos que as esquivas, o contato foi inevitável.
De repente, um dos jogadores agarrou o outro pelas pernas, levantou na altura dos ombros e lançou ao solo com fúria. O que caiu se levantou feito um corisco e foi para cima do outro desferindo socos.
O mestre interveio, interrompeu a música e gritou:
_ Heeeeiiiiiiiiii !
Todos pararam e olharam para o Mestre, que começou a falar:
_ O que é isso? Briga? Isso aqui é capoeira, gente.
Um dos rapazes não se conteve e tentou discutir:
_Mas Mestre, nós somos guerreiros, temos que treinar, pois pode ser que os praticantes de outras lutas venham nos enfrentar.
E o Mestre sabiamente começou a ensinar sua arte:
_Meu filho, a Capoeira não foi feita para enfrentamento. Na verdade o Capoeira nunca enfrenta, ele evita.
E o rapaz responde inconformado:
_E se um monte de gente quiser me bater? Eu não vou fazer nada?
E o Mestre continuou:
_Nesse caso, de dificuldade, o Capoeira corre. Se forem 4 pessoas a "te" perseguirem, você vai correr até restar só um na perseguição.
Daí você pára. E aí sim vai mostrar o que sabe, com o oponente cansado.
_Mas eu assisto aqueles campeonatos de Vale-Tudo na TV, e eles se enfrentam.
_Eu sei, meu filho, mas lá eles lutam pela fama e pelo dinheiro. Lutam para o público. Nossa Capoeira é a arte de sobreviver, de se esconder, de esperar. Se o "cabra" é mais forte que você, você cabeceia o nariz, fura o olho, chuta os "badalo", e até morde na cara, se for preciso. Lá o negócio chama vale tudo, mas é cheio de regra, senão fica feio.
_Mas por quê o senhor parou o jogo?
E o Mestre finalizou:
_Porque tava feio, olha as crianças aí. Vamos jogar bonito que nossa arte já é considerada coisa de vadio. Vamos mostrar que é exercício para o corpo e para a mente.
_E o Mestre recomeçou o jogo cantando a seguinte música:
- Se você faz um jogo ligeiro,
- E dá pulo pra lá e pra cá,
- Não se julgue tão bom capoeira,
- Que a capoeira não é tão vulgar,
- Para ser um bom capoeirista,
- Tem que ter disciplina e amor,
- Saber respeitar o seu Mestre,
- Tocar instrumento e ser bom professor.
No alvorecer do dia, os primeiros pássaros cantavam antes de raiar o sol.
Mestre Adão já havia pendurado o berimbau. Agora seu instrumento era outro. De chapéu de palha, lenço no pescoço, bota e perneira, o homem amolava o podão com uma lima, enquanto esperava o caminhão que o levaria até o canavial, para cortar seu ganha pão.