SERTÃO MEU - GERAES (cap. 03)

No derradeiro domingo daquele abril de ventanias e friagens, o padre Kohnert – toc-toc-toc em sua cavalgadura, caminho afora – partiu do Engenho Velho mais cedo que de costume; ainda com o sol embicado no meio do céu. O povo, porém, que viera para a missa matutina, não arredou pé do Largo. No pátio da casa de escola a meninada promovia uma pândega de mil capetinhas: gritos, assovios, corridas, quedas misturados na pintação do sete! Mandava o brinquedo de ura. Um fedelho com vozica de taquara rachada destampava: “Um, dois, trêis..." – e logo uma chusma de meninos-homens e de meninas-mulheres saía em abalada carreira pelos derredores, à procura de esconderijos – “trinta-e-um de janeiro, cada galinha no seu poleiro, já lá vooou!”, arrematava o pegador, deixando o pique.

Na porta da farmácia, os fazendeiros graúdos faziam roda. O coronel Belarmino Rodrigues, como de hábito, comandava a prosa. Com seu jeitão de matuto despachado contaria algum caso de rês barbatã, ou quando nada representava pros companheiros a última anedota ouvida na estação do trem de ferro, no Bom Despacho. Dos que faziam plateia ao proprietário das Aroeiras, identificava-se de pronto Zuza Quirino, sempre expansivo em gestos e xingos; nhô-Leleco, da Estiva, a cada gaitada parecendo beber o fôlego; Tote Rufino, mal se cabendo nas botinas rangedeiras, que lhe atormentavam os calos; o outro-um era o Ferreirinha, afamado por ser tão astucioso na escora de marruás em ponta de vara de ferrão, quanto na mestreza em chaçar peixes nos remansos de águas turvas. Rios e riachos, lagoas e lagunas, vazantes e veredas: tinha alguma cacimba naquele pedaço de sertão, que o galileuzinho inda não batera anzol? Coá, não! Em córrego barrento, insolente, ele se dava ao luxo de cantar solene, a raça do peixe fisgado, em-antes de arrancar o bitelo pra fora! Dividido entre acompanhar as conversas dos fazendeiros e manipular suas mezinhas, politiqueiro, o Pacheco farmacêutico prodigalizava reverências e mesuras, numa porta e outra do seu estabelecimento.

Da outra banda do arruado, a venda do Guido se encartuchava de roceiros e retireiros. A caipirada toda daquelas barrancas do rio Picão – entre um pito e uma pinga – se amoquecava nos calcanhares, proseando no tom confidente e velhaco dos catireiros. Mineiramente! Da ponta do balcão vinha o nheco-nheco buliçoso duma sanfona. Os dedos magrelos do brancarrão Delmiro arrancavam soluços da sua oito-baixos, enquanto com bafo de cachaça ia desentoando.

– Quem me vê assim, cantando,

Cuida que eu sou feliz,

Coração padece coisas,

Que a boca nem sempre diz.

No domingo de missa, quando o poviléu trançava desocupado pelo Largo, magotes de capiaus medrosos esgueiravam-se para não passar embaixo da gameleira. Vai que no desmazelo se era comum ter a fatiota domingueira manchada pelo leite de suas frutinhas, atiradas por ninguém menos que um diabinho desaforado, temiam e tremiam deslembrados que nem tudo vindo lá do céu é o tinhoso quem manda.

Mais para cima um tiquinho, fora da mira dos pererês encapetados, quebrando o sol rumo às bandas do rio São Francisco, a rapaziada solteira formava pequenas ilhas, meio elas perpasseando moçoilas casadeiras. O Alexandre, vaqueiro-capataz das Aroeiras, valendo-se do porte espigado debruçava a vista sobre os ombros dos companheiros de lida e folga, para acompanhar os rabos-de-saia até bem mais longe. A cabeleira escura aparecendo farta sob a aba do chapéu, emoldurava-lhe a tez amorenada pelo sol dos Geraes.

As coroas de rapazes eram quase levadas de roldão pelas correntes de moças, assim encompridando o movimento até perto da igreja. A cada vaga ouviam-se galanteios amorosos, recebidos entre risotas contidas nas conchas das mãos. A maioria ostentava ainda seus vestidos de missa, rescendendo ao doce perfume de benjoin e patchuli; uns rodados, mas sem esconder-lhes os requebrados sensuais – que nem cobra nadando contra a correnteza; outros justos, pondo em relevo os contornos daqueles corpos-crescentes, de seiozinhões mal-e-mal contidos, premidos, a estofar ousadozinhos sob decotes pudicos.

Do povo de saia das Aroeiras, ali compareciam a Donana e a Cotinha: faceiras, festeiras, indo e vindo de braços dados com a Helena. Todas alegrinhas, como frangas ensaiando a primeira postura! A Lena virara um taco de morena, pra deixar qualquer marmanjo de cabeça-inchada. Mormente o vaqueiro Xande, que apreciava caçoar com os companheiros, lembrando ela meninota, se embaraçando na barra da saia maria-mijona. Tempo quase nenhum e apanhara corpo de mulher: abrobrinha de cerca da horta, que ninguém apontou o dedo! E lá se ia a Helena, o vestido bem talhado deixando, vez por outra, aparentar a barriga da perna. Quando alongava mais o compasso, um olhar aventureiro podia adivinhar a cor da sinhaninha que lhe enfeitava a barra da combinação! Depois ela vinha, os cabelos longos descaídos sobre as espáduas, desanuviando os olhos negros, vagamente soturnos. Enquanto cochichava com as amigas, seus lábios pareciam mal se tocar provocando uma covinha em cada face. Vendo a moça passar rente a si, o capataz não disfarçou seu xodó, cismando alto.

– Na volta pras Aroeiras, mais logo, pego um bonde com a Lena!

- Vale uma fezinha? Desafiou o vaqueiro Caceba, por pura galhofa.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 14/12/2011
Reeditado em 28/06/2012
Código do texto: T3388447