UM HOMEM PERFEITO

Ele nascera assim: deveras autoconfiante de que, com toda a fé de verdade, teria vindo ao mundo tão-somente para ser um homem bom. E não adiantava que alguém se lhe risse no rosto, quando Severino “Bililiu” de Sena arremessava mais uma das suas despropositadas lambanças. Contudo, venhamos, não eram gabolices arrogantes, vulgares, que apresentassem o mais mínimo laivo de vaidade nem de narcisismo.

Não que, neste momento, esteja interessado em meter o bico na vida alheia. Não é isto. Pessoalmente acho ridículo um gajo tesourar outrem pelas costas. Ou mesmo que seja para lhe fazer apenas um arremedo de elogio. Pelas costas, não. E elogios, sim senhor, a quem eles fazem jus, sem meias palavras, devem ser rasgados aos quatro ventos e atirados às ventas do freguês. Agora, se o coisa-ruim for homem público, de culpa no cartório e em fazendo por onde, aí não lhe meço bordoadas, até pelas regadas da carcaça dos lombos.

Mas que Seu Bililiu saíra um sujeito bem-intencionado, alma boa e de predicados irretorquíveis, ah, lá em tudo isso ninguém ponha nem um dedinho de dúvida. Surgido de longe, dos fundos do agreste das Alagoas, puxando cachorrinha com fome, seis bruguelos com a cara de fora no mundo e mais outro na barriga da mulher, ainda por vir à tona.

Grátis, sem pagar um vintém, de bochecha, ainda novo, quase em folha, Seu Bililiu veio com a família a escalar sertões, tiradas de léguas e muita poeira, fazendo baldeações sucessivas, indo daqui para acolá, conforme os paus-de-arara tomavam este ou aquele destino. O certo é que, feliz e finalmente, foi bater com seu povinho e os costados próprios na freguesia da Capital, lá onde os sertanejos têm a ilusão de que é só nas cidades grandes o justo lugar no qual a onça bebe água.

Do último caminhão que pegou bochecha, vindo lá da cidadezinha em que o mestre Graciliano Ramos foi intendente municipal, a já numerosa prole de Seu Bililiu foi arriada no largo da Sé, templo que os católicos maceioenses conhecem melhor pelo apelido de Pátio da Catedral. Ali, despejados como caçuás de mandioca, sob a torre do templo central, os meninos de D. Sinhá e Seu Bililiu encontraram a melhor temporária das guaridas.

A mulher e os bichos mais graúdos da casa improvisada, sob uma marquise da igreja, esmolaram, chiaram pelas ruas próximas e pediram ajuda pelo amor de Deus. Porém o certo é que ninguém da corriola de Seu Bililiu entregou o couro às varas, no período de bem mais duas semanas.

Ao tomar ciência da presença dos moradores inéditos, naquele santo local, até então gente retirante notada no patamar do templo oficial da Cúria de Maceió, o prior da Catedral, Monsenhor Velho, solicitou, por intermédio de uma beata daquelas que se confessam diariamente, a presença do pai daquele pessoal miúdo que soubera arranchado bem debaixo das pestanas da sacrossanta Sé.

Então, dito e feito... Seu Bililiu foi ter com Monsenhor Velho, mais que depressa, e logo cedinho, no dia seguinte, segundo o querer do mandachuva religioso. Sem jeito, arisco que só gato na espreita de rato, bateu na dependência do padre-superior. E, com benevolência franciscana, no interior da sala foi logo introduzido, qual fosse bichão graúdo.

Diplomático, Sua Reverendíssima inquiriu o sertanejo que tivera a ousadia de ocupar a sombra do templo-matriz, na maior boa conversa deste mundo. Tratou logo o camarada por “meu filho”. Perguntas de praxe de quem quer inteirar-se da vidinha do outro. Monsenhor Velho logo foi curto e grosso: acabara de assumir um baita sítio na periferia da Grande Maceió e precisava de um caseiro, gente limpa, asseada, de vergonha na cara; pessoa honesta, que cuidasse dos teréns das terras herdadas dos pais, já falecidos e podres de ricos.

Ora, mas o convite de monsenhor botou água na fervura nas preocupações de Seu Bililiu. Ainda tão novo – nem quarenta anos ele somava – e de muito muque nos braços, mas ter que viver aos emboléus numa cidade grande e de gente estranha, sem nem ter onde cair vivo? Contrato de palavra, para pegar ou largar, ali em cima do ato: “– Sim senhor, aceito o oferecido e não vou lhe decepcionar, Vossa Reverendíssima, porque Bililiu de Sena não é homem de faltar com a promessa. O senhor acredite que sou homem muito bom e do bem.”

Promovido ele a caseiro, a miuçalha de Seu Bililiu largou de esmolar no pátio da Sé. Agora, todos feitos, homens fortes e mulheres bonitas; gente de pelo fino, as moças de batom nos beiços, graças às novas funções de agregados às terras de Monsenhor Velho.

“– Acreditem que sou um homem bom, e sou mesmo!” – era assim que Seu Bililiu deitava jactância toda vez que, ao sítio, de férias, ou em retiro espiritual, aportavam alguns grupos de jovens, freiras e seminaristas, a fim de curtir sol, mordicar frutas tropicais e pegar carona de lancha no lastro do lago enorme que dormitava bem à frente da casa-grande.

Periodicamente, sem falhar no ritual, o caridoso monsenhor levava cestas básicas – de dez a uma dúzia – para que Seu Bililiu relacionasse quem, com critério, estivesse mais necessitado e apto para ser contemplado com um desses agrados de misericórdia.

“– Mas, monsenhor, Vossa Reverendíssima já sabe que eu dou muitas frutas, garapa de cana e coco verde, e até leite de vaca eu distribuo para essa gente, pois Bililiu de Sena é uma pessoa muito boa, de coração enorme” – ao que Monsenhor Velho só se ria, de leve, achando uma mui sucinta graça por detrás do bigode inexistente.

Anos e anos foram decorridos, décadas se passaram, e o alagoano sertanejo tanto fez carreira no sítio que lá ainda manda e desmanda no gado e no pessoal lá dele. Está anoso, hoje, mas quão dá conta do recado no latifúndio que pertenceu aos ancestrais de Monsenhor Velho.

Falei tudo o que foi dito de Seu Bililiu para realçar que ninguém, nem nas Alagoas, ou mesmo no Sul maravilha, em lugar algum deste planeta, existiu gajo tão bom e pai-d’égua quanto ele. Tão bom que se jactava de ser o melhor dos sujeitos do mundo. Um homem perfeito. Qualquer visitante, mesmo só de passagem pelo sítio gerido por Severino de Sena, atestaria todo este causo aqui historiado.

“– Veja bem, meu senhor. Eu sou um homem muito bom, de coração maior que o mundo. Alguém melhor do Bililiu ainda não nasceu. E nem vai haver um de igual calibre.”

Era sempre assim. Ele falava com tanta convicção que freguês nenhum, visitante do sítio de Monsenhor Velho, saía de lá com qualquer nódoa de dúvida. Pelo menos foi o que me contou a ex-religiosa – sóror, freira ou irmã juramentada, e eu sei lá –, tida e havida pelo doce nome de Dulce. Aliás, uma das críticas e admiradoras, a um só tempo, da bondade sem presunção de Seu Bililiu.

Ainda conforme essa ex-freira, quem se borrava de achar graça, mas com discrição, lhanamente, quando Seu Bililiu metia a língua pelos peitos, a jactar-se e lambuzar-se de bondade, era o ancião e virtuoso Monsenhor Velho. Não sei, não, que nunca vi. Mas posso lhes afiançar que o caseiro perene do "Cantinho da Paz", o sítio, era mestre maior nas artes da pabulagem e da fanfarrice, quando o assunto era, ou que não fosse, a própria pessoa lá dele. E seu bordão preferido, sem qualquer pingo de narcisismo, eis aqui:

“– Eu sou um homem muito bom, demais e bastante, e sou mesmo!”

Fort., 29/01/2012.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 29/01/2012
Reeditado em 29/01/2012
Código do texto: T3468465
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