Roubar é comum

 

Meu tio Oto tinha uma loja de calçados na Rua São Francisco, no centro histórico de Curitiba. Durante muitos anos, a Casa Lorita garantiu o sustento da família, mesmo algum tempo após a sua morte prematura.

 

O padrão da loja era voltado para a classe média, oferecendo produtos de qualidade com preço justo. No rol de fregueses estavam famílias tradicionais da cidade e muitos colonos que se abasteciam no comércio das cercanias, enquanto  os cavalos matavam a sede no bebedouro do Largo da Ordem.

 

Numa tarde de pouco movimento, meu tio estava sozinho na loja, quando chegou uma senhora bem vestida, educada e falando com o sotaque chiado de uma importante e maravilhosa cidade da Região Sudeste. Pediu para ver alguns modelos, sentou-se e foi provando aqueles que ele trazia.

 

Em poucos minutos já dava para concluir que se tratava de uma cliente exigente demais, pois nada lhe agradava. Um apertava em cima, outro nos lados, um terceiro folgava. Aquele era feio ou a cor não combinava. Calçava um por um e torcia o nariz.

O tio Oto, com a paciência que Deus lhe dera em excesso, ia tirando tudo das prateleiras, na tentativa de encontrar um exemplar que satisfizesse tão sofisticada senhora.

 

Depois de oferecer todos os modelos das prateleiras, ele foi ao estoque, no mezanino, buscar mais alguns. Olhando lá de cima, viu que a mulher escondia um par do melhor sapato de salto alto na bolsa, depois de experimentá-lo e tampar cuidadosamente a caixa vazia.

Em seguida, tio Oto voltou com vários outros pares e continuou no seu ofício de servir, com a mesma dedicação e sem comentar nada acerca do flagrante. Queria ver no que ia dar aquilo.

 

Após meia hora e muitos pares provados, colocando um ar forjado de irritação no semblante, a forasteira levantou-se e disse:

 

- Já vi que nesta cidade não tem sapatos que me agradem.

 

Voltou-se para a porta com o propósito de tomar o rumo da rua, mas o meu tio prontamente a interrompeu, postando-se à sua frente.

 

- Minha senhora, lamento não termos sapatos do seu agrado. Mas gostaria que devolvesse o par que está na sua bolsa e faltando aqui - disse ele com a caixa correspondente nas mãos.

 

A distinta madame, surpresa ao saber-se descoberta, logo fingiu indignação para começar sua defesa. Contudo arrependeu-se assim que iniciou a primeira frase, avaliando que de nada adiantaria um bate-boca àquela altura dos acontecimentos. Olhou para o tio Oto de cima a baixo com visível desprezo e sacou da bolsa os sapatos surrupiados. Com força, atirou-os aos pés dele e, caprichando no sotaque, despediu-se com esta:

 

- Pode ficar com sua porcaria. E saiba o senhor que roubar, neste país, é comum.


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N. do A. (1) - Meu tio Oto Boehm era casado com a tia Rosina (Zina), irmã do meu pai. Em uma ensolarada manhã, alguns dias antes do verão ceder lugar ao outono, saiu de casa andando, depois de contemplar as rosas do jardim, para uma cirurgia em um hospital no centro da cidade. No dia seguinte, voltava dentro de um caixão. A ele, minha eterna admiração com profunda saudade.

 

N. do A. (2) - Na ilustração, Largo da Ordem de Paul Garfunkel (França, 1900 - Curitiba, 1981), em Curitiba, Paraná, em cujas imediações ficava a Casa Lorita.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 27/03/2012
Reeditado em 08/02/2022
Código do texto: T3578547
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