O Encontro

O que é a morte?

O que significa?

Por que morremos?

Tempos atrás, uma menina de nove anos perguntou sobre a morte. Da razão de levar as pessoas que amamos.

Não encontrei respostas que pudessem esclarecer. Respondi que morte seria o vazio, o nada existente.

Comentou que uma menina de sete anos morreu de tanto apanhar da mãe viciada. Era a morte ou a violência que fez a criança morrer? Não respondi, não achei resposta coerente e pensei:

Quem tira a nossa vida, nós ou a morte? Quem dá o disparo, nós ou a morte?

Quando pequeno meu cãozinho morreu. Papai me consolou, dizendo que o animal ficaria bem e em paz no lugar enviado.

Então a morte salvou meu cãozinho do sofrimento? Ou a doença entregou de bandeja para ela?

Ela traz questões, reflexões e apontamentos, saudades e lagrimas.

Papai. hoje levantei cedo. Vou visita-lo. Há anos que não o visito. Brigamos.

Caminho, observo as pessoas, movimentos e expressões. Penso na vida, o que recebi dela.

Ontem, na hora do almoço apareceu uma moça. Tinha vinte ou dezoito anos. Branca, muito branca, olhos de girassol, cabelo de margarida e guirlanda na cabeça, vestido branco de cetim. Voz serena, como o orvalho das manhãs de outubro.

- Jacó. Teu pai... Precisa vê-lo. Vá à casa de teu pai, Jacó.

Não a conheço, nem sei o nome e veio falar de papai.

- Não se atrase. Ou será tarde demais.

Arrumei-me, avisei a inquilina que talvez voltasse só amanhã.

- Aonde vai?

- Ver meu pai.

Não é longe a casa. Resolvo ir a pé, olhar as pessoas, o modo de agir e se comportarem.

E quem seria ela a falar de papai? Sabia quem eu era.

Quis saber. Não deu. Desapareceu. Evaporou.

Arrisquei de perguntar a inquilina.

- Não quero putaria por aqui, entendeu? Ou terei que ser mais clara?

Não precisei continuar. Não a viu. Fiquei de mãos vazias.

Não sei como surgiu. Foi na realidade do sonho?

Hoje acordei pensando no velho. Nos anos que afastamos, da solidão que tornou amante de ambos.

E ela alertou da saúde do papai.

- Não está nada bem. Visite-o, Jacó.

Vou, na casa do velho.

Aparento aparência proustiana, andar calmo em passos vagarosos e filosóficos.

Lembro-me do rei, que no matinal passeio encontrou a morte. Quando o acharam, possuía serenidade e um belo sorriso no semblante.

O excelente passeio foi precursor do soberano e lhe presenteou com o toque da morte. Não que o monarca estivesse enfermo, naquele momento, a ceifadora da vida carregou-o para os seus domínios.

Há o caso da noiva. A senhora que perdeu o noivo no dia do casamento. Nunca mais tirou o vestido, envelheceu. Nem permitiu amor entrar no coração. Ficou solitária, primavera sem emoção.

Certo dia levantou, alguém que não se sabe perguntou:

- O que deseja?

- Nada. Aprovo o simples. Sou simplicidade em pessoa.

Encontraram na cadeira de repouso. Segurava fotografia do amado e estava arrumada e enfeitada. Não sofreu, não teve dor. Faleceu na simplicidade.

A morte aplica o toque gélido nas pessoas de boa sorte.

O rico avarento conheceu num dia bom. Havia ganhado uma excelente quantia em moedas. Comemorando, deu de cara com o estranho de terno escuro, muito branco e pálido. Muitos comentavam que procurava o avarento. Presentearia com grandiosas riquezas.

Dois dias depois, foi encontrado morto afundado na montanha de moedas.

A quem diz que o rosto era pavor, susto e demência. Faleceu na própria fortuna.

Já o estranho, não chegou a ser mais visto perambulando no local.

Meu velho e eu nos afastamos. Faz anos. Na verdade, eu me afastei.

A gente discutiu. Fiz as malas, virei nômade, retornei para São José dos Campos e não me mudei mais.

Papai soube, por orgulho, não veio me procurar.

Também por orgulho, fiz a mesma coisa.

Uma antiga namorada quis saber.

Mês de junho, bastante frio e questionou a relação de meu pai comigo.

- O que houve entre vocês?

- Brigamos e estamos brigados.

- Qual motivo?

- A gente amou a mesma mulher.

Faz anos. Caminho para revê-lo.

Uma estranha avisou que ele não está bem de saúde.

- Não se atrase. Ou será tarde demais.

Tem pessoas que encanam a morte, oferecem meios, truques e acordos para a bendita aumentar o prazo de vida.

O velho chinês escolheu esse método.

E quando percebeu e entendeu, exigiu que o levasse.

Por castigo e ter sido encanada, amaldiçoou com muitos anos de vida.

Presenciou entes queridos morrerem um por um. A cada ano falecia, dando ao velho a solidão e tristeza de conviver e presenciar as pessoas que amava indo para nunca mais voltar.

Há aqueles que a morte nem se aproxima. Ou porque o seu toque não traz efeito.

Assim era o imortal.

Pessoas nasciam e faleciam, o imortal vivo.

Testemunhou guerras, chagas, pragas e revoluções.

As épocas trafegando nos olhos.

Teve amantes, esposas e não gerou filhos. O homem que não morria, lamentava. Como o velho chinês, porem, não trapaceou. Sofria, porque as pessoas que amava morriam com o passar dos tempos.

- Imortalidade? Não é dom, força, ou maldição. Traz nada de satisfatório. É

Amargura, tristeza e solidão. Sou morto que não morre e não tem descanso e paz.

Andando, pensando no dia que sai de casa.

Mês de maio, meu velho bravejava injurias e ingratidões. Estávamos exaltados de raiva e cólera. Peguei o caminho e andei sem direção. Entrei no hotel. Ao amanhecer, peguei ônibus para Jacareí, o começo das repetidas mudanças.

O motivo da discussão foi à tragédia que abateu-nos. Alias, afetou demais em mim. O caso era típico enredo de antigas historias românticas. Tem horas que me culpo de ter trazido esse trauma. E decidi que a melhor solução seria distanciar de meu pai.

Arranjei um lugar, uma inquilina que implica, mas é boa gente. Tem vezes que saio em socorro para acudi-la nas crises de bronquite. A pobre não larga do maço de cigarros. Fuma as escondidas e ao praticar, tosse e pigarra a garganta.

- A senhora pode contrair câncer ou outra espécie de enfermidade que o tabaco acusa.

- Que se dane. Sabe Jacó, antes de morrer, mamãe realizou seu ultimo fumo no cachimbo de estimação. Lembro até hoje, a voz calma chamando:

“Pegue o cachimbo na gaveta. Prepare o fumo. Morrerei, não é verdade? Que a morte aguarde bocadinho pra ter tempo de dar a ultima tragada.”

- Ela não morreu de tabagismo ou coisa nesse sentido. Realizou o ultima vontade. Mamãe... Que esteja bem no céu.

E lá ia eu salva-la nos tempos de crises. Sabendo do que fazia as escondidas.

Encontro-me na esquina da rua de meu pai. Gera lembranças. Infância trafegada no afasto. Eu, ele, mamãe e a mulher que amávamos.

Com mamãe tive poucos momentos. Confesso que recordo vagamente. Afinal, era bem pequeno. Depois, crescido, foram constantes correrias, tombos, passeios, piruetas e cambalhotas, encontros na véspera de natal e o ano novo, o carnaval, a festa dos santos reis, o mês junino e as quadrilhas, a copa do mundo. As celebrações que praticávamos.

Antes, contarei dois casos referentes à senhora morte, o que a tal significa.

O primeiro era o louco barão, que fascinado construiu um casarão e nele criou alguns leões.

Os animais domesticados num extenso aposento, alimentados, cuidados e preparados.

A loucura era grandiosa. E inocentes empregados viraram refeições das feras. Chegaram a sequestrar filhos de moradores para a monstruosidade.

E na comemoração de aniversario o louco abraçou a morte.

Era aniversario de 40 anos.

Ordenou dias antes para não alimentar as crias.

Convidou aristocratas, burgueses e intelectuais. Até o clérigo.

Ninguém sabia das intenções do demente. Nenhum presente desconfiou.

Sim. Planejou a sua morte. Convidou à alta gente, para presenciar o desejo, vontade de ser devorado, comido e dilacerado.

Desse modo, deixando vários dias sem alimentação, as feras ficam agressivas.

Atormentados pela insanidade e impedidos de saírem, os convidados assistiram o que a mente humana proporcionou.

Viram o doido entrar nu na jaula.

Dentro, leões famintos e nervosos. Nem se deu a pachorra de esboçar uma silaba, foi ligeiramente atacado e devorado.

Tempos depois, por ordem do governo, o casarão tombou.

Uma maneira de evitar lembrar-se do grotesco e insano dia e para não manchar a reputação da cidade.

Mas o caso surpreendente ocorreu no estado do nordeste, no recanto sertanejo, no sertão. Que por decisão, a cidade deixou de existir.

Havia o fanático Jonas Oliveira de Albuquerque. Homem adorador da morte.

Obcecado em servir a dama que ceifa vidas.

Chegou a assassinar animais, além de aves e onças.

Jonas era homem muito rico, filho único de um nobre português e de uma pernambucana burguesa. Solteiro por escolha. Chegou a estudar em seminários, porem, jamais aceitou a vida religiosa.

O fanatismo com a morte ocorreu após a trágica perda da mãe. A coitada pega em emboscada armada pelos inimigos do pai. Naquela época homens guerreavam para tomar posse das terras dos outros e assim, duelos, guerras e emboscadas aconteciam. E foi desse jeito, que a mãe de Jonas morreu. Emboscada, varada de balas e chumbo.

Ele tinha oito anos e presenciou a tragédia. Os inimigos pouparam a sua vida. Com o assassinato da mãe, viu a morte de perto e por mais que pudesse traumatizar uma criança, o menino adorou.

Claro que tempo depois, o pai foi assassinato e Jonas ficou aos cuidados da tia que morava pelos lados do cariri.

Quando completou maioridade e se afastou do seminário, retornou a cidade de nascença e com os dotes da herança começou a construir a seita. Seita em homenagem a morte.

Não que os habitantes aceitariam uma seita nesses parâmetros. Nenhuma alma concordaria prestar orações, cânticos ou ritual que fosse para morte.

Jonas ludibriou. Ou seja, mentiu. Manipulou, fez lavagem cerebral. Encanou os habitantes a adorarem uma deusa sertaneja de nome Diana.

Cuja visão, o fanático teve nas andanças que realizava.

Não havia Diana, nem deusa. Muitos menos na cidade, Bahia, Recife, Terras do Ceará, nordeste inteiro. Deusa do sertão e da seca ninguém conhecia.

Dissera que surgiu montada num belíssimo cavalo branco, de vestido branco, pele branca, cada braço luvas de seda, chapéu também branco e delicado, meio crochê, meio algodão. Olhos avermelhados, penetrantes e decididos. Nos pés botas marrons e delicado cinto feminino de couro que era de jiboia.

- Eu sou a morte. A morte que veio avisa-lo.

Com essas palavras (que não podemos dar muito credito) a aparição ordenou que Jonas fizesse.

- Vá, Erga a casa. Construa o templo. Reúna o rebanho para adorar a mim, eu a morte.

Nos olhos assustados, viu o cavalo branco apear e tomar o caminho, deixando apenas o pó levantar.

Abençoado, o adorador correu as pressas e revelou a visão e a missão ordenada.

Ninguém levaria a serio e construiria um lugar de preces e adoração para o ser que ceifa vidas. Assim, a morte, virou Diana, deusa do sertão.

E como as pessoas eram humildes e de pequenas ideias, não demoraram e principalmente o prefeito, aceitarem a proposta.

Nisso, a ala católica se debandou, não compactuando e testemunhando um ato de desrespeito a Deus.

O que facilitou. Além de nomeado pastor da deusa Diana. Ou seja, a morte.

Não houve relutância das pessoas e do prefeito. O que contribuiu a insanidade de Jonas.

Seis meses. Seis meses prestados para levantar o templo.

Para inaugurar, os cidadãos sacrificaram animais de variadas espécies. Bodes, cabras, cães, gatos, vacas, aves, burros e mulas tiveram as gargantas e sangue esparramados no altar.

Aconteceu na sexta-feira do dia 27 de março.

Reunido à população, o pastor Jonas Oliveira de Albuquerque, ousado e louco, exigiu o sangue dos moradores como ato de sacrifício, honra e gloria a deusa Diana.

Ludibriados, hipnotizados, uma chacina na cidade começou.

Acreditaram numa vida melhor, que neste plano sujo e doente, preso nas mãos do inimigo. Sacrificados em honra à deusa.

Adultos, crianças, idosos, ricos e pobres, manchou o solo da cidade. Nenhum escapou do sacrifício, nem os recém-nascidos, as moças que paririam, os enfermos e os aleijados.

Nas palavras vociferadas do líder, um mundo belo, sem macula, puro, de amor e prosperidade e de riqueza.

O que descobriu tempos à frente, é que durou a noite inteira. Sequer forçados ou submetidos. De bom agrado morreram em favor do plano melhor.

Quando a policia, Estado, governador, autoridades militares chegaram e presenciaram o terror na cidade, encontraram Jonas de Oliveira Albuquerque deitado, morto sobre uma jovem com os seios nus no altar. Não imaginavam barbaridade e insanidade.

Por alto, fuxicos aqui e ali. Ouviram a historia e a seita, até o prefeito comentou. Sequer vieram verificar e averiguar. Tivessem realizado, não entraria na chacina que se abateu.

Jamais alma viva pisou no local. A cidade manchada, não há mais vestígios.

A tragédia contada em cordéis, poemas, trovas, musicais, peças teatrais e romances sertanejos.

Quem se deu bem foi o escritor Eduardo Gomes Teixeira, com o romance A Cidade e a Seita Recebendo elogios, principalmente na Europa e Estados Unidos.

Encerro aqui a relação que a morte carrega na humanidade.

Chegou a hora do encontro. Hora de entrar novamente na casa que um dia chamei de lar.

Puxo a trava do portão e abro. Entro.

Não ouço som vindo dentro. Silencio.

A porta aberta. Silencio.

Entro e reconheço o cheiro e recordações.

As fotografias que enfeitavam deu lugar a quadros de pinturas e gravuras mal feitas. O relógio cuco pendurado, no cantinho que sempre foi dele. Era dos avós da mamãe.

Certos objetos deram espaço aos modernos aparelhos da moda.

Saio da sala. Entro no corredor.

Há três quartos. Meu, de papai e outro...

Acho que fui atraído. Quando percebo, viro a maçaneta devagar para abafar o barulho. O quarto da mulher que a gente amou...

Tudo no lugar. Nada trocado ou modificado. A penteadeira que teimava em dizer que veio da França não foi retirada. Os vidros de perfumes... Alguns nem usados. Mexo nas gavetas, pertences nas mesmas posições.

Com cuidado, esforço para abrir as portas do guarda-roupa. As roupas, vestidos, blusas, camisas, pendurados nos cabides. Papai não moveu nenhum dedo. Deixou do jeito que eu vi da ultima vez.

Nem a cama.

Ela ainda vive na casa...

Deito. Preciso buscar recordações há tempos apagadas.

Tinha o nome das musas de Jose de Alencar. As heroínas dos romances, que nunca arrisquei de procurar.

Seu nome era Lucíola.

Se não tivesse explicado que foi retirado do romance de Jose de Alencar, eu não saberia até hoje.

Apareceu num dia de chuva. Numa quinta-feira de tarde. Chegou com meu pai.

Fazia onze meses que mamãe morreu. E desde a morte dela, papai nunca mais demonstrou alegria. Vivia triste pelos cantos.

A chegada dela trouxe novos ares para ele e por incrível que pareça pra mim também.

- Jacó, filho, venha aqui um pouquinho.

E estava do lado dele, encolhida, jeitinho tímido, porém belo de admirar.

- Jacó. Essa é Lucíola. Ela cuidará dos afazeres da casa.

Tinha os olhos da cor do mel, o cabelo escuro, bem escuro e liso, usava vestido simples de pano simples, uma cor rosa desbotada, o rosto miúdo, fino, a estatura média, a primeira vista, me pareceu uma índia fugida dos romances que sempre desprezei. Não sei como, mas despertou em mim o interesse que não encontrei em nenhuma mulher.

- Prazer. Jacó.

Estendeu a mão tímida e num aperto leve, conheci Lucíola.

Não resmungou oi, olá, prazer em te conhecer. Nada. Apenas me deu a mão.

De leve apertei. Encarei os olhos. Lucíola conquistou meu coração.

- Vem. Deixe suas malas no quarto.

E papai a levou para o novo quarto que passou a pertencê-la. Nesse dia nem botei os pés na rua.

Lucíola virou assistente da casa. Fazendo os serviços necessários. Como: lavar, cozinhar e limpar.

Aos poucos e interesse da minha parte que descobri a origem do nome e também de que parte viera.

- Lá dos lados de Minas Gerais. Na região da mata. Comentou.

Percebi que meu pai mudara o comportamento, sendo que demonstrava galanteios e elogios a nossa hospede. O estranho era que não percebi que ele também nutria interesse na moça.

Após seis meses de convívio, estávamos íntimos de Lucíola. E ela sentia o mesmo sentimento.

Já resolvia os problemas sem a nossa ajuda. Além de buscar o que faltava e realizar as necessidades que precisava.

Eu não esperava a hora de declarar, revelar o que sentia. Há tempos estudava, encenava o momento exato para dizer e a hora veio.

Não como desejava e como sucedeu. Tudo deu errado...

Papai e Lucíola voltavam de um passeio. Alias, passeios eram constantes entre os dois, na qual não participava e por respeito aos dois ficava ou partia para outro destino.

Enfim, retornaram do passeio e a fisionomia principalmente de Lucíola era de chuvas de pratas de alegria.

E ela ganhou no dia anterior um belo vestido e sapatos.

Eis que veio a revelação, de que eu cego, não apercebi do que ocorria debaixo do meu nariz. Nem cisma ou desconfiança. Nem imaginava ou imaginaria.

- Jacó, filho. Preste atenção.

Ele tomou a mão dela e apertou num carinho de proteção.

- Fique de testemunha que aqui o amor floresceu. O amor entre mim e Lucíola.

Então pasmado, papai continuou.

- Esteja em testemunha, de que nesse lar o casamento breve se realizará.

Tomei de choque. Disfarçadamente desabei na poltrona mais próxima. Boquiaberto e surpreso esbocei um silencioso parabéns.

Neste dia, tomei de raiva a noticia de que a pessoa que estava amando, na verdade iria se noivar com meu pai e casar.

Tranquei-me no quarto e nele permaneci.

Todo homem é impuro, todo homem vive em cólera. Ele, na ira, não enxerga nada. Somente o vermelho, ou a cegueira do ódio e da raiva. E da inveja, por que não?

Pois eram os três sentimentos que brotaram após saber que não teria Lucíola e de que seria esposa do meu velho.

Não desejei felicidades, não desejei alegrias para o casal. Em pensamento, apenas uma ordem: roubar a bela moça.

Sim. Deixei que a vilania, a mesquinhez dominasse. Comecei meu duelo secreto para roubar a mocinha.

Antes desistisse ou esquecesse e partisse pra outra. Mas, não. Meu dever ferido precisava de cura. E desse modo agi.

E foi numa tarde.

Aguardei que papai saísse e aproveitei para dizer o que estava preso dentro de mim.

Fiz. A reação de Lucíola não foi mais do que esperado. Surpresa e surpreendida com a declaração. Negou. Explicou que amava meu pai, que estava em divida com ele por lhe dar um lar, conforto e hospitalidade que não recebia há muito tempo.

Com essa divida, o mais que pagaria era seu amor para com ele.

- Essa afirmação seria casar?

- Sim. Está acertado. Nada mudará.

Furioso, puxei-a para mim e a beijei.

Lucíola mordeu meu lábio, fazendo-me solta-la. Bofeteou minha cara.

- O que pensa que está fazendo! – Gritou e correu se trancando no quarto.

Arrependido, batia na porta, pedindo que me perdoasse, que esquecesse o que ocorreu. Em prantos gritava para deixa-la em paz, que respeitasse sua privacidade.

Antes tivesse ouvido a razão. Antes evitasse o que fiz. E eu e papai não tivéssemos separados por tanto tempo.

Os dias que passaram Lucíola não vinha nada bem. Ficou ainda mais calada, respondendo pouco e vivia pelos cantos em choro. Papai cismado perguntava e eu para despistar inventava qualquer assunto para desviar.

Nem os passeios e os novos presentes puderam tirar o semblante que carregava. E eu era o culpado...

Até que num certo dia aconteceu o que não queríamos ter acontecido.

Havia retornado da caminhada. Refleti o erro e revelaria que ocorreu comigo e Lucíola. Decidi que a solução mais correta era sair de casa. Assim esqueceria meus sentimentos.

Tive sensação estranha ao chegar. Chamei meu pai, mas nada de responder. Envergonhado chamei Lucíola. E tive a mesma resposta.

Tinham saído a passeio. Imaginei.

Entrando no corredor, a porta do quarto dela estava entreaberta. Curioso, espiei. Estava deitada de barriga pra cima e a cabeça deitada de lado. Entrei.

Foi ao aproximar que vi a faca deitada do lado dela. E o pescoço num profundo ferimento.

Desesperado, fui acudi-la. Infelizmente não havia mais o que fazer. Estava morta.

E dessa tragédia, trouxe a discussão e a separação entre mim e meu pai.

Nunca mais falamos e nos vimos. A magoa é grande. Hoje estou de volta, deitado na cama da mulher que amei e que por minha culpa não está entre nós.

Levanto. Seguro o choro da lembrança que teima sair dos olhos.

Ouço tosse. Papai.

Tosse mais uma vez.

Saio do quarto.

A tosse vem do aposento dele.

Tosse de novo.

- Pai!

Falo alto caminhando na direção do som.

- Pai!

E vejo-o deitado numa cara de surpresa e susto.

- Pai, sou eu. – Falo entrando no quarto.

- Jacó? É você... É você de verdade? – Pergunta surpreso.

- Sou sim, pai. Jacó.

Seu rosto muda de expressão. Fecha feito um tempo ruim.

- O que faz aqui? – Pergunta ríspido.

- Uma moça apareceu onde moro e avisou da saúde do senhor e alertou-me para visita-lo. Vim o mais rápido que pude.

- Moça? Você disse moça? – Pergunta papai mudando sua expressão de tempo ruim para de surpreso outra vez.

- Foi. Veio do nada e desapareceu do nada.

- Idiota. Avisei-a para não te procurar. Maldita mulher intrometida!

Era minha vez de ficar surpreso.

- Mas, pai. Ela disse que o senhor não está bem de saúde. E informou que se não viesse, seria tarde demais.

- Ah, que bobagem! Essas pessoas são exageradas. É uma doença à toa. Isso passa.

Volta à expressão de mal humor. E me pergunta:

- Veio pra saber como estou ou também por outro motivo?

Encara-me desafiando e se ajeita na cabeceira da cama.

- Vim pra te ver pai, só isso. – Respondo de cabeça baixa.

- Reparou no quarto dela? Não troquei e retirei nenhum objeto. Roupas, perfumes, sapatos, a cama, tudo do mesmo jeitinho que deixou.

- Eu... Eu não vi. Não entrei.

- Tem certeza?

Pergunta. Lança olhar duvidoso em cima de mim.

- Sim, tenho. – Respondo meio sem jeito.

- Tudo bem. Já que descobriu que não estou tão mal como lhe disseram, volte para o lugar que viera. – Diz ríspido e grosseiro.

- Pai?

- Anda, Jacó. Agradeço a preocupação, mas, por favor, vá embora!

Não acredito que está me mandando embora. Ou seja, expulsando-me da minha antiga casa.

- Pai. Não trate seu filho desse jeito!

- Não tenho filho. Perdi-o há muito tempo.

- Não fale assim, sou seu filho!

- Não tenho. - Fala de mau humor, de cara fechada. – Não quero uma pessoa que tirou da minha vida à mulher que eu amava...

- Pai?

- Vá embora, Jacó. Não pertence mais a esse lugar. Por favor, saia e deixa-me sossegado.

- Pai...

- Vá logo, Jacó!

- Só vim lhe dizer que lamento tudo que aconteceu naquele dia. Tudo mesmo. E falar que nunca deixei de te amar. Te amo, pai. Não se esqueça disso. Eu Jacó teu filho, te ama. Adeus. Adeus papai.

Saio de coração partido, no silencio da casa.

Nem imagino a sua reação. Não quero supor e inventar coisa alguma.

Ganho a rua. Ganho a calçada.

E ela vem. Sim, ela vem. À moça que apareceu pra mim.

Com vestido branco de seda, chapéu branco antigo do século XVIII, luvas que encobre os braços, sapatos delicados e o rosto sereno.

Sorri pra mim, numa expressão de alivio por ter me encontrado.

- Ah, veio visitar o pai.

- Sim, vim. – Digo num tom de desanimo.

- Hum, que bom. Ainda bem que deu tempo pra se verem uma ultima vez.

- Foi. Falou a verdade. A ultima vez, certamente.

- Sim.

- É melhor entrar logo, está sozinho. Precisa de você. Depois do que teve lá dentro...

- Não estou por causa do seu pai, Jacó. Vim atrás de você.

- De mim? Pensei que era conhecida do meu pai.

- Ah, é complicado de explicar e entender. Nem consigo compreender. E não culparei também de não encontrar sentido nenhum.

Olho-a desconfiado. Sem imaginar quem possa ser.

- Moça, quem é a senhorita, afinal?

- Ah, Jacó. Não prestou atenção em nada? Sua trajetória até aqui na casa do seu pai foi falar da minha pessoa. Possuo varias formas, sentidos e aparências. Não consegue saber quem eu sou?

- Do que est...

- FUUU!

- Do pó viestes, Jacó. Do pó retornarás.

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 06/04/2012
Código do texto: T3596922
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