O urso

- O bicho sempre no limiar do entardecer espreguiça na arvore. Depois, com os braços, abraça e ruge. Não é rugido de raiva, tristeza ou revolta. Rugido de satisfação, de estar abraçado, gozando do prazer, que para mim, era incompreensível.

Meu avô quando vivo, recontava essa parte. Acho que, desde pequeno. Contava a historia do urso da montanha, que descia no limiar do entardecer para abraçar a arvore.

Vovô morreu e jamais conseguiu ao menos dar um disparo de raspão no animal. Morreu dizendo que o urso o abraçou e que a jornada havia chegado ao fim.

O conflito do bicho com o meu avô começou na idade dos 18 anos, ao descobrir pela primeira vez a intimidade que o outro tinha com a arvore.

Tal cena possibilitava acabar com o bichano. O animal, parado e indefeso, não atrapalharia e o dedo pulsando, esperando o puxar do gatilho.

- O olhar tinha mistura de feitiço ou sei lá o que. Dava pavor de encarar. Não eram olhos de fera. Eram olhos humanos.

Assim, vovô com misto de covardia e raiva, desistia.

No grupo de caçadores, na qual incluía o pai, reclamações eram constantes, tomaram a decisão de excluí-lo. Meu avô tinha seus 28 anos.

Envergonhado com a expulsão e ainda ser chamado de covarde e mulherzinha pelo pai, tomou a missão na vida, matar o urso da montanha.

Ao completar 31 anos, casou com vovó. Moça dez anos mais nova. No certo é que empenhado de caçar o bicho, nunca teve tempo de reparar na esposa, nem sentir amor ou paixão. Também não sentia nada pela filha, minha mãe.

Vovó o compreendia ou disfarçava compreensão. Às vezes, mamãe via lagrimas escorrendo do rostinho da coitada. Mulher forte, como dizia mamãe.

Para ele, a vida era ele e o urso. A esposa e filha eram desenhos apagados da existência.

Aos 38 anos, o pai faleceu. No leito de morte, nunca perdoou o filho pela humilhação que sofreu. E que após o fato, não pode comparecer mais no grupo de caçadores.

Sentiu-se culpado. Ou melhor, culpou o coitado do animal. Não teriam sidos expulsos. Um disparo. Faltou o disparo.

Com 42 anos, quase conseguiu pegar a fera. Quase, porque a bala acertou a arvore.

- Nos encaramos por dois minutos. Eu tremia, ele, tranqüilo. Tentei não encarar diretamente os olhos. Aquilo arrepiava e tirava a concentração. Moveu a cabeça, soltando os braços da arvore.

“Morrerá maldito, morrerá!”

Puxei o gatilho. A bala acertou a arvore. Maldito, correu. Emprenhou-se na floresta. Perdendo na escuridão.

Para a vida de desgosto e azar, o culpado era o urso. Até a falta de amor entre a esposa e filha, o animal era o culpado.

Os 45 anos foram marcados com a saída da minha avó. Cansada, escreveu uma carta explicando a saída, levando minha mãe.

Porem, arrependida, voltou três dias depois. Pediu perdão. Desorientado, nunca pronunciava palavra alguma com vovó. Com o passar compreendeu o desgosto da mulher, a ausência com a família.

Quando nasci, meu avô era homem velho. Sequer junto da esposa, quando essa faleceu.

Posso dizer que mamãe o culpou, trazendo na vida mais um sentimento de culpa.

Agora não era somente o pai. Era esposa e filha. Talvez vovó não. Com o andar dos tempos entendeu a missão. Mamãe não perdoava.

Com o meu nascimento, permanecia mais na casa. Saia pouco, das saídas, eram para caçar o maldito. Feriados, comemorações, chuva, frio, sol, lá ia com espingarda esperar o urso abraçar a arvore.

Presenciava sua raiva, frustração em não conseguir seu objetivo.

Com minha presença e crescimento e vendo-me mocinho, talvez enxergasse como substituto.

Foi aí, com meus 12 anos que soube das historias, do que ocorreu. Orgulhoso narrava às caçadas que fazia com o pai. Narrava cada detalhe, sem se esquecer dos perigos. Contava com a intenção de influenciar e eu fizesse parte dos caçadores da família.

E mamãe brigou. Briga feia. Expliquei que não seria igual. Não sairia a caçar animal nenhum. Adorava ouvir a historia, repetidas, adoráveis no meu conceito.

E chegou a hora que meu avô largou a espingarda. A aposentaria bateu as asas nele.

No entanto, quem avisou foi o urso.

- Vá descansar velho homem. Seu tempo de caçada terminou. Guarde a arma, não precisa mais dela. Sua missão e dívida estão encerradas.

Disse que as palavras saíram do animal, que o encarou com os olhos humanos. Viu a vida que perdeu, a família. Percebeu que a filha deu um neto e amava-o. Mesmo depois queria influenciá-lo para caçar a fera que tanto o infernizou.

- Não sirvo pra mais nada. Pra que presto, senão pra caçar?

Não sei se as palavras foram disparos certeiros. Mas surtiu efeito surtiu. E acordou, fazendo entender o que perdeu.

- Só hoje sei do meu erro...

Vovô teve mais um ano de vida. A tristeza e a depressão levaram-no a morte.

Hoje, passado alguns anos relembro dos detalhes. Não moramos mais na casa, mudamos perto do centro.

Tenho um fato a contar, que até hoje permanece na minha mente.

Após o falecimento de vovô, sai e caminhando fui encontrar com o famoso bicho. Não portava arma, uma curiosidade invadiu por desejar conhecer a tal fera.

E lá estava. O animal velho, fraco, semblante cansado. O urso como meu avô envelheceu. Ambos envelheceram. Com carinho e dificuldade, enlaçou a arvore. Despedida, ultimo adeus, abraço final.

Encostou a cabeça no tronco e deslizou o corpo até o chão. Virou a cabeça e me encontrou. Fixou seu olhar e pude ver os olhos humanos. Também me senti estranho, arrepiado. Sensação não era boa. Rugiu. Rugido cansado e de velhice.

O limiar do entardecer apontava e olhando-me disse:

- Minha jornada se encerra. A vida se encerra...

Suspirou. O ultimo suspiro.

Os braços soltaram-se. As folhas caindo no corpo. Muitas, muitas folhas caindo. Encobrindo o velho urso. Ou o enfeitavam. Depois, as das arvores vizinhas caíram, derramando, prestando homenagem ao animal. Fazendo do trabalho um túmulo.

Ali descobri. Que o homem e animal não eram inimigos. Eram amigos. Só não sabiam explicar o que sentiam um pelo outro.

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 21/04/2012
Código do texto: T3625468
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