CAIO, O REVOLUCIONÁRIO

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      Conheci o Caio em um laboratório no qual trabalhei. Vez ou outra, ele acontecia por lá e batia um belo papo com o seu velho companheiro de Liceu, o Dr. Tomé. À época, Dr. Tomé ainda era só um dos sócios do laboratório, capitaneado por outro cientista, o patriarca Dr. Alencar. (Sobre os médicos, uma ligeira digressão).

      Quando o Dr. Alencar partiu para professorar Medicina Tropical, na Universidade de Roma, e posteriormente na Cidade do México, deu a manchete, em garrafais, no valente “Última Hora”, do Rio de Janeiro: “MAIS UM CIENTISTA BRASILEIRO É CORRIDO PELA REVOLUÇÃO”. O brioso jornal, hoje falecido, ainda não podia falar a verdade e dizer – “... PELA DITADURA”.

      Os dois citados médicos, acima, não eram apenas médicos comuns, mas cientistas – e cientistas de fama e escama e de obras publicadas – e titulares em suas cátedras, na Faculdade de Medicina da UFC.

      A princípio, arisco, com esparsas visitas ao laboratório, depois passou o Caio a tirar conversa comigo. E soube que ele se tratava de um revolucionário – é certo que de idealista, meio pirado –, porém maranguapense como eu e o Chico Anysio.

      Sujeito calvo, branco e vermelhão, alto e de olhos azuis, o Caio denunciava ser aloirado e com traços de alemão, ou de galego, conforme os nossos hábitos culturais da classificação étnica, aqui, nas terras do Nordeste.

      Filho de uma família da aristocracia rural de Maranguape, não prosseguiu nos estudos, parando ali no 2º grau. Contudo, tornou-se um autodidata e, já antes do golpe de Estado de 64, gratuitamente, o nosso personagem dava cursos de filosofia, dialética e materialismo científico para estudantes, membros de sindicatos e simpatizantes das esquerdas, em geral.

      Por essas atividades, a repressão política botou-lhe o cavalo atrás. Aí é quando o Caio meteu-se na clandestinidade. Esperto, tinha pernas longas. Mesmo assim caiu preso. Só que não deixara rastro e nada a ditadura pôde comprovar da sua ação “subversiva”.

      Um dia, ele passa no laboratório, arrecadando alguma contribuição para ir à França. Isto era pouco antes das efervescências político-sociais do Quartier Latin, em 1968, ano de muitas e férteis turbulências também, aqui, no Brasil. Com uma bolsa de livros às costas, o Caio me repassou, de graça, dois clássicos do Lênin, “O que fazer?” e “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”.

      Dito e feito, ele voou para a Cidade Luz.

      De volta a Fortaleza, o nosso idealista fez-nos algumas breves explanações das escaramuças e barricadas dos estudantes do Quartier Latin e, já um pouco mais íntimo, também contou sobre o casamento dele.

      Moça de boa gente, e de família amiga da família dele, ela tivera um filho, como se diz, no popular, “por produção independente”. Um drama para certas famílias tradicionais. Então, voluntariamente, sem amor nenhum, o Caio se candidata para resolver o impasse da menina. E se apresentou à moça e à família dela e fez a proposta irrecusável:

      – Caso com você, só para sanar o seu problema de mãe solteira.

      Dito e feito, outra vez: o nosso revolucionário casou-se com todos os itens e formalismos cartoriais e da Igreja. Mas, como a moça continuasse a manter encontros sigilosos com o pai da criança, então o Caio – segundo ele próprio, “amigavelmente”, pediu a dissolução do casório.

      Lá um dia, a céu limpo e azul, o galego aparece no Carlos Chagas e, com uma pardavasca a tiracolo, nos apresenta sua nova cara-metade. Uma indiazinha maranhense, de feições até engraçadas, mas cuja cabeça apenas batia ali pouco acima do umbigo do Caio. E com idade de ser filha dele, a pardavasca.

      O novo casal, em idílio de puro platonismo, estava-se agasalhando em barraco armado à beira do Atlântico, na hoje turística, aprazível e famosa Praia do Futuro, em Fortaleza.

      Não dava bolas para a família abastada e latifundiária, metida a sebo, sediada no próximo e próspero município de Maranguape. Por sinal, certa feita, ele intentou, lá, nas terras do pai, fazer a tão sonhada Reforma Agrária, até hoje nunca saída do papel, nacionalmente. Claro que a família Cirino lhe bloqueou o desejo.

      Por terceiros, porém informação segura, eu soube que, certa vez, o irrequieto e idealista Caio – de tão revolucionário e inteligente, que era, parecia meio tantã – deixou uma irmã casada, residente na Capital, com os nervos aos pandarecos.

      – Minha irmã, se prepare! A Revolução está chegando aí. Vai chover balas. Compre o mais que puder. Encha a despensa de víveres. Vai haver um blecaute danado na distribuição de gêneros alimentícios. Encha tudo, aí, gêneros alimentícios!

      A última vez que vi o ilustre e tantã conterrâneo, no centro da cidade, ele já não se fazia acompanhar da constante indiazinha maranhense. Mas continuava no barraco da Praia do Futuro, zona nobre do turismo tupiniquim.

      Portando bolsa a tiracolo, de onde sacou uns livretos, mais em formato de panfletos do que de livros, o nosso revolucionário, lá nos livretos, deitava versos tortos e bombásticas citações ao melhor estilo do marxismo-leninismo. Comprei duas destas obras, que, aliás, nem sei onde botei e nem li, de cabo a rabo.

      O nosso personagem é da vida real e chamava-se Caio Cirino. Tempo desses, perguntei a um militar bombeiro, que se disse maranguapense, se o conhecia e o que era feito do Caio. Respondeu-me o bombeiro: – Maranguape inteira conhecia o Caio. Ele faleceu.
Fort., 07/05/2012.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 07/05/2012
Reeditado em 07/05/2012
Código do texto: T3654276
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