O que é que mãe tava fazeno em pé de madrugada, Eunice?

O que é que mãe tava fazeno em pé de madrugada, Eunice?

Era Domingo e Eunice, na flor dos seus 38 anos, debruçada na janela, olhava o movimento de quem ia e vinha naquela tarde lânguida e silenciosa na cidadezinha de JARDIM DE PIRANHAS, sertão do meu Rio grande do Norte.

Vivia com a mãe e outra irmã solteirona. A mãe enferma, não podia sequer ficar em pé sozinha, dependia das filhas que se queixavam da doença da velha, alegando não conseguirem casamento por causa da enfermidade da mãe. Chegando da casa da madrinha, Maria Filó, como era mais conhecida, Maria Filomena, a irmã mais velha, indagou a Eunice:

-Tu vai pra missa hoje?

-Tou cum priguiça!Deus que me perdoe, mas aquele “pade” ta veio demais, né não? Ele fala tão arrastado que a gente cochila.

-E cochilar é coisa que tu entente , né mocinha? Apois fique aqui cum mãe, que u vou pa missa e de lá vou durmi na casa de Zefa de Joaquim Honóro, que amanhã o fio dela vai chegar e ela quer fazer uns bolo(Filó era boleira fina). Tu fica de oi em mãe, vice? Hoje eu achei ela tão fraquinha.

-Vai, vai, pode ir, eu pastoro mainha, é minha cruz mermo, fico aqui arremoendo minhas esquisitices.

Contava-se à boca pequena, que Eunice havia tido um filho que nascera morto, de tanto que ela apertara a barriga para ninguém saber, o fato é que ela esteve internada uns dias, por causa de um suposto fibroma uterino, até hoje defendido por ela e contestado pelo resto da cidade.Mas deixemos de lado o passado da “donzela” e vamos aos fatos;

Jardim de Piranhas era uma cidadezinha muito pequena na década de 60, quase um povoado, todo mundo se conhecia. O padre rezava missa a cada quinze dias, vinha de Acari; o médico mensal era de Caicó; a feira terminava ao meio dia e festa na cidade, só no São João ou na Padroeira.

Filó se emperiquitou toda e foi em busca da igrejinha local. Eunice esquentou a sopa e serviu a dona Beata sua mãe.

-Coma mãe, que a sopa é de osso, ta é boa, eu botei jerimum cabôco dentro, depois eu lhe dou um cafezim.

-Minha fia, num quero café não, nem sopa, hoje eu to meia ruim do estambo, parece inté que tou cun dô de barriga.

-A sinhora tem que cumê, mãe, se num cumê fica pio, vai cagá o que?

-Vixe, Eunice, acho bão me levá no apareio, acho que é dô de barriga mermo.

Eunice levou a mãe, uma duas , três vezes quase seguidas. Pelo fato da mãe estar com esse incômodo, armou uma rede ao lado da cama de dona Beata, para o caso dela precisar ir ao banheiro à noite, pegou uma revista Sétimo Céu, acendeu a lamparina e ficou lendo deitada enquanto dona beata roncava.Diante do quadro, vendo a mãe mais tranqüila, Eunice adormeceu.

-Eunice...(era dona Beata às 2 da manhã)Eunice...oh moça do sono pesado...eu quero ir no apareio...Eunice...

Nada, Eunice não acordou. Dona Beata num extremo esforço, ficou de pé e caminhou para o banheiro que ficava na cozinha da casa.No meio do caminho, o baque.Não teve como continuar dormindo. Eunice ouviu o barulho, olhou para a cama da mãe, sonolenta, ela não estava lá, e a moça despertou de vez.

-Mãe?...mãe?...cade a sinhora?...Ai meu Deus!Mãe!Mãe!, fale comigo, mãe,ai Jesus, mãe, mâããããããããeeeeee...

A velha senhora caída no batente a cozinha ainda conservava os olhos semi abertos, mas em seu peito o coração já não batia. Desesperada, Eunice gritou para os vizinhos:

-Maria Lúcia, Edite, dona Maria, me acuda aqui, pelo amor de Deus, mãe ta morta!

Os vizinhos correram para acudir.

-Cadê Filó?

-Tá na Ca de Zefa de Joaquim Honóro, pede a Bubucha pra ir buscar ela. Vai depressa menino. Oh meu Deus, como é que mãe se alevanta sem chamá eu?

O rapagote corre para avisar a Filó, que nessas alturas da noite, ainda fazia bolos na casa da comadre.

-Que diabo tu tais fazendo aqui a essa hora, menino?

-Vim chamar a sinhora.

-Oxe, mode o que? Mãe piorou, foi?

-Não.

-E o que foi?Desimbucha, menino!

-Ela morreu. Tá mortinha lá no acero da cuzinha da casa da sinhora.

-Ai meu Deus!Como é que mãe foi parar na cozinha que ela nem andava?

-Sei lá, só sei que ela morreu lá!

Sairam os dois correndo em busca da casa da finada. Quando avistou a irmã, Filo gritou-lhe na madrugada:

- O que é que mãe tava fazeno em pé de madrugada, Eunice? Foi tu, bichiga taboca!Foi tu que dexasse mãe se alevantá sozinha! Aposto que tu tava durmino, infiliz das costa ôca.

-Calma Filó, eu adormeci sem querer. Tava cum a rede vizinho a ela e ela num me chamou.

-Isso é mintira, condenada, eu vou lhe arrancar as tripa se tu tiver deixado mãe morrê de propósito.

-Valha-me Deus, criatura, adonde eu ia fazê isso cum mãe? E tu que tava nas casa dos outro?

-Tava trabaiano, frexada...

-Ei...ei...vambora parar com isso e tratar de colocar a finada dona Beata na cama até chegar o caixão! Já ta morta mermo, que é que vai adiantar saber se uma dormia ou se outra tava na rua?(Era dona Maria, a vizinha, tentando conter os ânimos).

No dia seguinte, toda cidade veio ao velório de dona Beata. Eunice sentada num canto da sala, chorava inconformada com sua negligência, por outro lado, Filó rezava junto com as outras mulheres.

-Vamos puxar o terço de Nossa Senhora para acompanhar a alma de mãe.

-Ave Maria, cheia de graça (olhava para Eunice), esse traste,infeliz, caningada, o Senhor é convosco, bendita sois vós (olhava para Eunice), bexiguenta, nojenta, deixou mãe morrer essa peste, entre as mulheres, bendito é o fruto (olhava pra Eunice) deixa o povo sair, sua disgramada que tu vai ver só, eu vou trocê teu pescoço, do vosso ventre, Jesus!