134 – ARMADILHA PRA PEIXE GRAÚDO

Certa vez fomos pescar em um rio chamado Entre Ribeiros, lá pras bandas da cidade de Presidente Olegário no estado de Minas Gerais, assim que passamos a cidade de Patos, logo em um pequeno trevo vira-se à esquerda e segue por estrada de chão batido, no caminho vimos uma mineradora que nos disseram pertencer ao grupo Votorantim, seguimos naquele estradão quando o nosso amigo o Alceu Venturoso, mais conhecido como Aventuroso nas vantagens contadas dizia que o mapa do caminho estava devidamente gravado no seu cérebro, nos seus miolos e assim fomos seguindo nas suas indicações, o sol deixou de ser o do meio dia e levemente já se inclinava sobre os montes e serras esticando as sombras e o nosso desespero, íamos enfrentando incontáveis obstáculos por entre cerrados e quiçaças, matas fechadas, estradas que se perdiam em meio a imensos cipoais, mas à medida que o sol caia mais aumentava a nossa desconfiança naquele mapa que estava gravado em miolos que na certa já estavam desgastados tanto pela idade, quanto pelo uso, e que com a maior facilidade do mundo embaralhava todas as estradas numa baita confusão, que nos deixava a cada momento mais desnorteados nas imensidões dos Gerais!

Enfim chegamos a um amontoado de casas, todas de pau a pique, cobertas de capim, tristeza de se ver, fomos recebidos alegremente por toda aquela gente humilde e sofrida, informamos que estávamos procurando pelo rio, e eles apontaram a direção, indagamos pela permissão para pescar na localidade, disseram que a passagem era livre e não devíamos nadica de nada pelo o uso da barranca, e afoitamente com velhos facões eles foram desbastando das laterais da estrada todo e qualquer arbusto que pudesse arranhar as caminhonetes... Deparamos com um rio completamente diferente daquele que o Aventuroso tinha nos seus miolos, quando o Vergílio Rigobelo:

- Então esse é o rio Entre Ribeiros?

- A esse aí a num é não, a esse aí a é o São Marcos! Um capiau respondeu.

Aquelas palavras ecoaram profundamente em nossos corações, o rio procurado tinha ficado pra trás, mas muito pra trás, senti saudades do meu revolver, queria furar na bala aquele cérebro do Aventuroso, miolo pirado registrador de falsos mapas, depois de muitas delongas, na falta de uma melhor opção e pressentindo que a noite desenfurnava, concordantes, na sombra de uma imensa figueira ficamos acampados, e nas proximidades do barranco saltavam pra dentro do rio umas pedras escuras em alongadas formações, lembrando imensos jacarés na espreita!

Na manhã seguinte ainda estávamos arrumando o acampamento, quando várias mulheres passaram carregando amassadas bacias que perfeitamente equilibravam sobre as suas cabeças, e nas rasuras por entre as pedras se puseram a lavar roupas. Entre estas passou também uma moça esguia, morena, seus cabelos eram tão negros que neles respingava o sol, não consegui ver a cor dos seus olhos, o seu caminhar era um remolejo deveras tentador, atraia o olhar, passaram nem nos cumprimentaram, a moça cantarolava uma velha canção.

Os dias de pescarias passam rápidos...

À noitinha chegávamos ao acampamento, gerador de eletricidade funcionando, bomba d’água também, tudo iluminado, quem já pescou sabe que é preciso que haja uma boa organização na distribuição dos serviços, eu e o José Pasteleiro limpávamos os peixes, o Chico Surdo e o Vergílio na cozinha, meu Pai lavando todos os utensílios sujos, o Alceu preparando a ceva que seria usada no dia seguinte, enfim formávamos uma boa equipe cada um sabia das suas responsabilidades, e procurávamos desempenhá-las com alegria e contentamento, com um mínimo possível de atritos e sempre contando causos e acontecidos, estrondosas gargalhadas nos relatos dos vexames.

Estranhamos que os ribeirinhos pouco nos visitassem, arredios aos nossos acenos de uma boa amizade, e a moça languidamente passava por entre nós, nunca nos cumprimentou, e sempre cantarolando a mesma canção.

Meu pai, o Nenê Bomfim, desconfiado conversava com o vento:

- Tem alguma coisa errada neste lugar!

Tarde da noite um acontecimento inesperado escancarou todas as porteiras do medo e pavor em nossos corações!

Vindo da outra barranca do rio, um homem afoitado, descendo do seu barco gemia por socorro:

- Pelo amor de Deus me ajudem, não estou mais aguentando, esta dor vai estourar a minha cabeça!

O homem abrindo a boca a todos mostrava o seu problema, iluminado por uma lanterna, foi aí que vimos a causa daquela dilacerante dor, um imenso tumor na base dos seus dentes molares que estavam todos cariados e infeccionados, explicamos que o único remédio para aliviar aquela situação, seria furar o tumor para aliviar a pressão que provocava todo aquele desconforto.

- Meu patrãozinho! Faça o que quiser, mas me livre desta dor pelo amor de Deus!

Num rápido e preciso toque com a incisiva ponta de um canivete, previamente amolado e esterilizado em água fervente, fez com que extravasasse daquele tumor um grosso é nojento líquido, o homem babava um pus amarelecido catingudo, das vezes misturado com sangue, coisa de embrulhar o estômago, aliviado da dor sorria parecendo chorar, respirava fundo, um copo de pinga para higienizar aquela fétida boca era a única coisa que dispúnhamos naquele momento, fazia bochechos, mas aproveitando da oportunidade creio que também engoliu boa parte daquela cachaça, querendo nos agradar, desconfiado e olhando pra todos os lados, destramelou a língua exigindo de todos um pacto, um juramento de boca fechada, o que falasse morreria ali!

- Esta moça que sempre passa cantarolando atraiu os olhos e os desejos de um pescador que sonhou fisgar aquela baita piapara, estava acampado neste mesmo local, e ela malandramente não seguiu no caminho da sua palhoça, mas se enveredou por estas quiçaças da beira do rio, sorrindo e olhando para o seu abobado admirador, olhar duma cascavel atraindo um desajeitado ratinho, armadilha montada já na espera, e o tolo pateticamente enfiou o pescoço e a alma no laço, ele acompanhou a moça mato adentro e afoitamente quando tentou abraçar a inocente pombinha se viu cercado pelo pai, irmãos, parentes, amigos da falsa vitima, e o pau comeu solto, gritos de longe se ouvia e lá do meio do cipoal arrastaram o homem todo peladão, nó de porco amarrando as juntas, e com uma peixeira tinindo de amolada estavam determinados a cortar as bolas do coitado que gritava e implorava por socorro, pedia perdão, clemências, chorava larguras de lágrimas e o sangue escorria dos olhos e cantos da boca, na certa nem mais se lembrava da piapara que sonhou fisgar, a sua vara estava irreconhecível, pequena demais para um peixe daquele tamanho, e o catiripau continuou amassando e ferindo carnes!

Os companheiros do desgraçado paquerador nada podiam fazer para ajudá-lo, ele já estava amarrado no tronco desta mesma figueira foi quando pior aconteceu, agarraram as suas bolas na pura encenação, mas num descuido descuidado da maldade apartada o fio do corte da peixeira triscou nos bagos do infeliz e o sangue começou a merejar e sabe o que aconteceu? O cabra mijo e cago, eca!!

- O que? Mijou e cagou? Santo Deus! Alguém lastimava.

Esguichou urina pra todos os lados e naqueles que no alcance estavam, num só tempo cagou uma bosta amolecida que empesteou o ar de catingas, que atraiu moscas varejeiras aos montões nas distancias, aí sim que a coisa ficou preta, leite derramando na fervura, pica pau fugiu do oco, nem a onça quis beber água, sertão bulindo encenação, gritaria estrondosa! Zueira! Doideira! Capa! Capa! Capa! Corta o saco dele! Cachorro acuado também mija pernas abaixo, e assim aquela palhaçada chegou aonde queriam que chegasse!

Um capiau armado de valentias duvidosas na mão uma garrucha trezentos e oitenta, de dois canos, armou os dois gatilhos e instituiu termos que naquela situação seriam irrecusáveis!

A família da moça teria que receber a paga pela quase violação da honra da inocente mocinha, tudo no consentido, no legal, só não no papel passado assinado, no palavreado, tudo assentado e concordado!

Depenaram os pobres pescadores, eram paulistas, tomaram deles toda a traia da pescaria, fogão, botijões de gás, uma canoa de alumínio, tudo quanto fosse mantimentos, relógios, gasolina, todo o dinheiro, os pobres coitados depois daquele revestrés partiram na pressa ligeira, mesmo afanados agradeciam por saírem vivos daquela enrascada!

- Ouvido é pra escuta, escutem! Se preparem, a armadilha está montada pra vocês, fiquem espertos, arregalem os zóios!

- Amigo! Ninguém vai acompanhar a moça mato adentro!

- Ouvido é pra escuta! Uma mentira dela vale por todas as verdades que ajuntarem! Fiquem espertos, a armadilha é pra pega peixe graúdo!

- Amigo! Como escapar desta armadilha?

- Depois de amanhã, todos os cabras com seus barcos sobem o rio até bem longe, e de lá descem com suas redes no arrastão, mas eles vão mandar um vigia, um homem baixinho, magro, olhos bem juntos, nariz fino, mais parece com um gambá, homem perigoso, desmedido nas maldades, boca de urutau, tem seu ponto fraco, a cachaça, quando começa a beber num sabe parar, de limite desprovido, na liberdade dada ele bebe é de copos cheios, depois começa a gemer, roncar, enrola a língua e o juízo e se entrega, dorme, anjinho de berço e este é o ponto certo pra cair na braquiára, tempo algum no perder!

O homem cessou abruptamente de falar e sacou uma garrucha toda enferrujada, que depois fui saber, calibre trinta e dois e a estendeu na minha direção:

- É o pagamento pela operação!

Recusei prontamente, mas ele insistiu:

- As molas estão quebradas, não tem serventia alguma, uma lembrança!

Aceitei sem antes o presentear com mantimentos e dinheiro!

A moça continuou a desfilar num requebro tentador pelo nosso acampamento, agora ela olhava pro nosso lado cantarolando a mesma canção!

E o dia depois de amanhã chegou, bem cedinho chegou também o espia, já o conhecíamos nas palavras ditas, com copos e mais copos de cachaça desmunhecamos o pobre coitado, que roncou, peidou e dormiu!

Toda a nossa traia nas carretas e nas caminhonetes, chutamos pedras para que as botas do pó se livrassem, dali nem o pó queríamos levar, a toda aceleração e na maior velocidade possível aluímos daquelas barrancas por subidas íngremes, avançamos pra nunca mais voltar, passamos pelas choupanas, a moça espavorida acenava, acenava, acenava, em meio a nuvens de pó ela desapareceu, bem lá na frente encontramos uma estrada asfaltada, aquilo aliviou do nosso medo e pavor!

Num determinado trecho da estrada paramos por alguns momentos num desafogo, quando nos vimos cercados por dezenas de pessoas de todas as idades oferecendo pedras preciosas e semi preciosas, comprei uma bela pedra azulada nos quilates na palma da mão pesados, sempre gostei de tudo que tem a cor azul, partimos...

Hoje ao puxar uma das gavetas da minha escrivaninha com exagero de força e desjeito, inesperadamente lá do fundo rolou a tal pedra azul que na luz mais bela se fez, rolou também as lembranças daquela moça que ainda cantarolava a mesma canção... “ Ole, muié rendera, ole muié renda, tu mim insina fazer renda, qui eu tim insino a namora**.” E era assim que ela cantava!

** Diz a lenda que esta música é de autoria do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, alcunhado de Lampião!

*Especialmente para o meu padrinho Roberto Rego e minha amiga Maria Mineira!!

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 09/08/2012
Reeditado em 26/06/2013
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