Foto do Rio Samburá
     
   Amanhece e a neblina se encontra com as águas do Rio Samburá. O João de barro pega na margem a massa para construir sua casa. Os pássaros pretos voam em bando por cima das árvores que filtram o sol da manhã. Capim gordura alto até chegar à margem do rio, o olhar atento, o perigo de cobra saindo do meio das pedras. Quatro pescadores descem o morro carregando as tralhas e já negaceando de longe para ver se enxergam a canoa com os três companheiros madrugadores.
    Ainda do barranco avistam as matrinxãs borbulhando a água. Logo estão debaixo da velha gameleira, onde dois rios se encontram, ambos  de igual fundura, tendo nas margens o mesmo terreno arenoso. As águas ali são profundas, um sumidouro, um remanso que engana os mais desavisados com suas espumas, porém, é onde se pesca os melhores peixes. É fim das cheias, as águas baixam e o rio mingua de tamanho. O lugar é excelente, pois a gameleira cobre com os galhos até quase a outra margem e seus frutos caem na água fazendo uma ceva constante.
   Alguns companheiros se dispersaram com o passar dos anos, mas a maioria estava ali,  porque para aqueles pescadores, aquilo era  uma tradição: se reunirem todo ano  para uma pescaria. Nem era tão importante chegar ao rio e pegar o peixe. O bom era a arrumação da tralha, a expectativa que tomava conta de todos, passar a Quaresma contando os dias até chegar a Semana Santa. Pescador é um ser estranho, faz todo um ritual para ir pra beira do rio, anda quilômetros a pé no meio dos matos carregando muito peso e quando chega escolhe um lugar e fica horas sozinho, em silêncio.
   Os mais pacientes preferem vara de anzol, isca de minhoca. Ajeitam-se nos barrancos  e ficam a cismar, vigiando a água. Ataque de mosquitos, marimbondos não faz nenhuma diferença,  o importante é o prazer de pescar, porque cada ação nesse mundo é uma aventura e um aprendizado, quando a invasão é feita na intenção de interagir com a natureza, ser parte dela... Bem ao contrário dos pescadores ambiciosos que usam redes, tarrafas e até bombas, estes  não se contentam com pouca coisa e que devagarinho  vão acabando com os peixes e destruindo os rios.
   O dia estava lindo! Céu claro, sem nuvens e já era tarde e não haviam pescado um peixe sequer. Até que o Zé gritou lá do outro lado do barranco:
   -Acode aqui, cumpadi Gaspar!  Acho que peguei um surubim!
   -Nossa! Ô cumpadi, isso num  é surubim não! Isso é  um  baita dum dorado! Sigura firme, num dexa iscapuli não sô!
   Era uma beleza de peixe da cor de ouro, dando saltos, tentando escapulir do anzol naquele final de tarde. O dourado aprumava o corpo, dava saltos, sacudindo desesperadamente a cabeça tentando escapar.  O Zé  segurava a vara de anzol dando e  puxando a linha, numa luta com o peixe, até que este se entregou derrotado, não sem antes tentar uma fuga derradeira. Esse dourado foi o único peixe fisgado naquele dia...
   O sol seguiu viagem. Os companheiros se reuniram ali debaixo da gameleira, onde estava montado o acampamento. Acederam o fogareiro e o Zé  se preocupou ao ouvir o Juarez avisar:
   -Hoje eu só quero peixe, nem precisa fazê arroiz pra mim.
   -Vai sê difici um dorado alimentá sete homi cum essa fome qui nóis tá.
   Enquanto cozinhavam a panela de arroz e fritavam o peixe, sob a luz fraca do lampião, os  amigos esvaziaram um garrafão de cachaça, ao som do velho radinho de pilha. O peixe frito  servido num prato, corria a roda regado a mais pinga. O Zé ia fritando e a turma comendo. O arroz ficou pronto e o Zé mais tonto que um gambá ainda fritava peixe. Jantaram arroz e peixe com fartura.
   Depois de certo tempo, ninguém mais se aguentava de tanto comer peixe frito e a frigideira  no fogo ainda chiava. Nessa hora um dos amigos que estava mais sóbrio comentou:
   -Uai sô, ieu tô dimirado de vê o tantão qui esse dorado rendeu... Inté parece milagre, nóis semo in sete pessoa e  nóis tudo cumeu pexe até num podê mais,  inda tem pexe frito no prato e no fugão fritano...
   Curiosos e confusos pegaram o lampião e iluminaram a trempe onde estava a frigideira. Aí descobriram o tal  “milagre”. A fumaça do fogareiro armado debaixo da gameleira se espalhava indo até os galhos da árvore que estavam cheios de mandruvás. O efeito da fumaça  tonteava as larvas derrubando-as dentro do óleo quente...
 
             
             
             Foto de mandruvás (lagartas de borboletas gigantes)

*Quem me contou a história foi meu compadre Toninho. Aconteceu perto do rancho dele.


Dedico ao meu amigo  Magno Max e a todos os pescadores que pescam sem destruir a natureza. 

 
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 26/08/2012
Reeditado em 27/08/2012
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