Talento nato

Eu tenho um talento nato. Tantas pessoas nascem, crescem, envelhecem e morrem sem sabe qual é o seu, e o meu se tornou evidente pouco depois de eu aprender a andar. Essa dádiva, essa habilidade pela qual sou conhecido apenas por alguns, que podem testemunhá-la com segurança e prazer, é o meu modo de cair e me arrebentar ridiculamente no chão.

__Cair é apenas uma das facetas da minha aptidão. Por anos e anos, eu não só tropecei em público, como também derrubei copos, quebrei pratos, espatifei vasos, bati a cabeça em extintores pendurados em paredes, levei picadas de enxames de vespas, esmaguei taturanas com a mão e tomei choque no nariz.

__Há quem diga que talento que é talento não se perde, que a criança que rodava um peão em 1940 pode, ainda hoje, rodá-lo e pegá-lo com a cordinha enquanto ele gira. Infelizmente para o público que me viu cair bestamente infinitas vezes, meu talento se apagou, e já não sou conhecido por essa destreza e leveza nos movimentos.

__A primeira evidência de que o meu dom desapareceria surgiu quando eu estava na sexta ou sétima série do primeiro grau. Todos os dias de manhã, a uma quadra da minha casa, eu deveria pegar o ônibus que levava ao colégio. Mas, logo ao sair de casa e trancar o portão, eu via o coletivo chegando. Tinha que correr desesperadamente para não perdê-lo. Quando eu finalmente entrava no veículo, o motorista falava:

__-Cuidado, hein?

__Certa vez, fiquei sabendo que quando aquele motorista me via saindo de casa para correr atrás do ônibus, ele dizia para os passageiros:

__-Lá vem o gordinho! Cuidado, gordinho! Assim, você vai cair.

__Acontece que eu nunca caí, e isso marcava o começo do fim da minha carreira de divertidor involuntário do público.

__Quando cheguei no aeroporto de Bozeman e me desiquilibrei ao pisar no gelo que cobria uma calçada, pensei que morar nessa cidade, toda coberta de neve escorregadia, seria uma boa oportunidade de voltar a praticar aquela arte. Não era possível que o jeito para a coisa tivesse se perdido por completo. Em algum lugar de mim, aquele domínio corporal deveria estar adormecido, apenas esperando por uma chance de mostrar que eu ainda era o mesmo.

__Foi enquanto eu sofria essa expectativa de descobrir se eu ainda era um artista que a Karla caiu no chão e mostrou que, hoje, ela era muito mais talentosa que eu. Ela caiu de lado na calçada com muito mais graça do que eu me lembrava ter conseguido fazer no passado. Se mesmo pisando em gelo tão liso quanto pista de patinação e tão distraído com a beleza das casas de Big Sky eu não caí, o dom não estava adormecido, e sim morto.

__No dia 22 de dezembro, eu saio de casa para pegar o ônibus em direção ao trabalho. O chão não estava fofo como costuma ficar quando neva. O dia anterior não fora frio o suficiente para impedir que o sol derretesse parte da neve que cobria a entrada do estacionamento do Golden Eagle, onde o ônibus pega os trabalhadores. Durante a noite, toda a água que já fora neve voltou a congelar. O chão estava brilhoso. O gelo era tão liso e regular que parecia que um vidro fino cobria aquele solo.

__Quando o ônibus chegou, todos os trabalhadores andaram em direção a ele. Alguns guris começaram a dizer a uma das colegas:

__-Cuidado, Sara! Não vai cair de novo.

__Ela respondia:

__-Até parece que eu caio tanto assim!

__-Você cai, ué!

__-Claro que não! Eu só caí duas vezes até agora.

__Mais alguns passos em direção ao ônibus e um som que eu ouvira alguns dias atrás, quando a Karla me humilhou, anunciou que todos deveriam olhar para o mesmo lugar. Esse lugar era a Sara, sentada no chão, curtindo a dor do seu terceiro tombo, enquanto dois amigos ao redor tentavam levantá-la. Uma vez mais estava provado que o meu talento já não era nada comparado ao dos intercambistas que estavam ao meu redor.

__Sara tinha sido avisada para tomar cuidado. Ela respondeu que só tinha caído duas vezes. Menos de dez segundos depois, essa afirmação já não era verdadeira. Lembrei da piada dos dois tomates que são atropelados por caminhões. Aquele tombo fora o mais engraçado que já presenciei. Não pude vê-lo, apenas ouvi-lo. Mas o diálogo que o precedera transformara o acidente numa cena de comédia. Eu já estava me imaginando contando para os colegas do trabalho sobre aquela queda.

__Eu já estava quase na porta do ônibus, andando a passos curtos pelo morrinho brilhoso e coberto de gelo, com as duas mãos nos bolsos da jaqueta, quando percebi que a sola da minha bota, tão cheia de anéis quanto uma chuteira, não era áspera o bastante para lutar contra a lisura daquele chão. Meus dois pés estavam muito próximos um do outro para que a perda de apoio em um deles pudesse ser compensada pela firmeza do outro. As mãos, que estavam dentro do bolso, não podiam me ajudar nem a me equilibrar, nem a diminuir a força do impacto contra o chão. Eu estava caindo. O jeitoso estava de volta.

__A perna direita não tinha apoio nenhum, e meu ombro direito apontou em direção ao chão. Havia anos que eu não sabia o que era a sensação do chão se aproximando de mim tão velozmente. Assim eu caí, com as duas mãos no bolso, virado de frente para o chão, reforçando o som do impacto com o meu gemido, que anunciava a ressureição da minha perícia:

__-UH!

__Dois rapazes me ajudaram a levantar. Não se ouviu nenhuma risada. Tenho certeza de que o tombo foi muito engraçado, ainda mais depois da cena protagonizada pela Sara. Acontece que todos ali sabiam que, cedo ou tarde, chegaria a vez deles de protagonizar o tombo da manhã.

__Tentando andar em direção à porta do ônibus, escorreguei mais uma vez, mas, dessa vez, sem cair. Quando finalmente subi o primeiro degrau da máquina, o motorista disse:

__-Are you ok?

__Foi então que percebi que sou um traidor da minha pátria. Durante dois anos, eu corri para pegar o ônibus que parava perto da minha casa e não caí nenhuma vez. O motorista anunciava a aproximação do gordinho e todos os passageiros ficavam atentos, torcendo para que ele tropeçasse e os presenteasse com um tombo idiota e doloroso. Em nenhuma das vezes dei o que aqueles brasileiros queriam ver.

__Agora que estou nos EUA, mostro para o motorista e para os passageiros do que sou capaz. Eles não esperaram nem um dia, não torceram sequer uma vez para me ver caindo. Mesmo assim, dei-lhes um ângulo vantajoso para assistir ao meu escorregão, enquanto os antigos passageiros do ônibus brasileiro que me levava ao colégio devem sonhar até hoje em me encontrar num canteiro caminhando, escorregando na grama molhada, levantando as duas pernas para o ar, batendo o traseiro no chão e dizendo “putz”, para depois levantar e disfarçadamente continuar andando, transformando-me no assunto do ônibus no dia seguinte.

(Esse texto faz parte do meu blog: www.viagemeua.blogspot.com)

Renan Oliveira
Enviado por Renan Oliveira em 23/02/2007
Código do texto: T390211