O Tesouro e a Tempestade

“... nada é mais sério que o sorriso de uma criança...”

Sempre tive uma admiração muito grande pelos guardas rodoviários. Embora a presença deles nas estradas ainda me dê um deslocamento no diafragma (frio na barriga) porque durante muito tempo andei sem possuir a famigerada CNH. Depois dos bombeiros são eles que gozam o segundo lugar no ranking de segurança. Seu andar de ganso parece ser ensaiado e treinado. Deixa qualquer um que tenha culpa com o coração na mão. O ano de 1976 findou muito parecido com 2009. Muita chuva. 1977 começou igual a 2010. Com muita chuva. Parece que só perderam em número de tragédias. Ou a TV, inibida pelas represálias da ditadura, “deixou prá lá”. Marcamos pro dia 21/01/77 viagem pro sítio do Vô Chico, meu Reino Encantado, onde costumeiramente passávamos as férias. Já tínhamos três filhos: Rita com seis, Dudu com cinco, Patrícia com 62 dias e minha mulher, Luzia, cuja idade não declino porque não é auspicioso andar por aí dizendo idade de mulher nenhuma. Quando começou a amanhecer percebemos que o dia seria de chuva. Foi clareando. De repente parou de clarear. E voltou a escurecer. Até parecia que o sol ao ver que o dia seria chuvoso tinha voltado a dormir. Mas não era. Era água mesmo. E de Ilha Solteira pro lado do Reino Encantado eu era que nem água de morro abaixo. Não tinha quem segurasse. A insuficiência de juízo era enorme. Caímos na estrada. Faróis do FUSCA ano 74, cor ocre, acesos, mas não se enxergava mais de 15 metros à frente. Tínhamos caminhado 57 km. Já na Rondon, pouco além da entrada de Castilho, observei que dos barrancos altos, formavam-se verdadeiras cachoeiras de enxurrada. Nas baixadas, o desnível não dava conta de escoar tanta água. Ia bem devagar. Não por cautela, mas porque não dava pra ver a estrada. Já eram umas 8 horas quando nos aproximamos do Posto da Guarda Rodoviária, que naquele tempo era pouco além da entrada de Andradina. Nisso o aguaceiro deu uma trégua. Com sua capa de chuva, o guarda estava no meio da pista. Deu sinal pra encostar. Parei um pouco à frente fora duma enorme poça. Pelo retrovisor o vi se aproximando naquele invejável passo de ganso. Não pediu documentos, perguntou prá aonde ia a família. Prá Sorocabana (Ah! Que saudade!), respondi. Aí ele me informou que todas as baixadas à minha frente estavam com pelo menos 30 centímetros de água sobre a pista. Foi quando, ainda com o mesmo passo de ganso, resolveu fazer uma vistoria no veículo de todos os ângulos. Nisso viu a Patrícia numa caminha feita de acolchoado atrás do banco do fusca. Parou para olhá-la melhor. E ela como era, e ainda é do seu estilo, desde a nascença, abriu-lhe um formoso sorriso. Parou a vistoria e voltou até mim e falou numa voz até piedosa: “Meu senhor tenha juízo! Com o tesouro que o senhor leva atrás daquele banco tinha é que ter ficado quietinho em casa”. Concordei, por falta de alternativas pra justificar a minha ação, e disse que ia voltar. E voltei. Quando cheguei à baixada antes da entrada de Castilho, já tinha fila de carros e caminhões parados. A água estava com mais de 1 metro por cima da pista. A chuva tinha diminuído, mas não tinha parado. Já viu prá aonde vai fogo de morro acima! Vamos voltar de novo. Quer dizer: Vamos continuar a viagem. Passei pelo mesmo herói e lhe dei a notícia. Disse que prosseguiria com todo cuidado. Que podia ficar sossegado, como se fosse ele que estava precisando de sossego. Fui com cuidado. A todo o momento lembrava-me do TESOURO que estava levando. Quando a pista estava coberta de água parava e esperava outros carros passarem. Tinha-se uma ideia da profundidade e da segurança. Aí prosseguia. A distância a ser percorrida era de aproximadamente 370 km (Fiz muitas outras vezes em 5 horas), naquele dia cheguei a Roseta às seis e meia da tarde. Como tinha saído às 7 horas da manhã, gastei 11 horas e meia de viagem, um pouco mais do dobro do tempo que gastaria em situação normal. Durante muito tempo contei e continuo contado este “causo” porque foi de uma observação de um humilde, mas competente profissional, que um professor aprendeu uma grande lição. (Oldack/10/01/010).

Oldack Mendes
Enviado por Oldack Mendes em 22/10/2012
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