PEDAÇOS

Primeiro, o silêncio.

Depois o ar adentrando e enchendo o peito.

E na boca, o sabor das palavras...

Tinha essa cisma com as palavras.

Não era sempre, mas, quando acontecia, ela ficava realmente intrigada.

A de hoje tinha surgido ao acaso, meio sem querer, nem ela mesma entendera ao certo como isso se deu. Acho que ela ouviu a palavra caindo da boca de uma pessoa qualquer na rua ou na padaria, assim mesmo, sem nenhum cuidado.

- É que hoje eu acordei com vontade...

Dizia o moço, feliz, enquanto bocejava.

(Espanto).

Como pode? Uma palavra tão perigosa como essa sendo vomitada, assim no meio da rua? Arregalou os olhos e começou a o morder o lábio inferior daquele jeito que só podia significar uma coisa: A menina se deparara com um apalavra nova, híbrida, obsoleta e sem gosto. E começa ai o seu fatídico desafio... A busca por decifrar o sabor obscuro da palavra que lhe trava a garganta.

E a menina inconformada, começou a questionar-se de como seria, se de fato essa vontade se concretizasse.

- Von-ta-de, ela repetia sem parar.

Mas, perdida, sentiu a angustia de não entender o que tal palavra queria lhe falar.

Aprendera a degustar o sabor das palavras, era um hobby estranho, adquirido em anos tenros, quando sua avó lhe contava anedotas na hora do ninar.

Ficava mirando a boca de sua avó, uma senhorinha de origem polonesa, e controlando em sua mente os inúmeros movimentos que os lábios dela faziam à medida que as palavras saiam. E foi assim, ao acaso...

Mas... E a tal vontade?

Vontade era uma palavra tão nova para ela, que já tinha ouvido tantas outras. E, sem nada encontrar, sentou em si mesma, e ficou imaginando o que vontade poderia significar.

Perdida em desespero, oscilou e teve medo de sucumbir ao desejo. Então respirou fundo, e num ato de pura coragem, como quem levanta depois do tombo de bicicleta, começou a degustar “vontade”: primeiro arquitetando a estrutura musical das letras, depois esmiuçando o colorido de cada silaba para, por fim, mergulhar.

(Surpresa).

Tentou comparar o gosto com outra velhas palavras comuns e mais conhecidas. Não era viscosa como “lama”, nem rançosa como “giz”. Tinha uma textura esponjosa de “infinito”, mas era forte, bem mais forte que o sabor de “mar”. E sem nenhum sucesso, a menina que ainda contava seus nove anos, encheu-se de vontade, e quis um sorvete de chocolate com a calda pegajosa de caramelo.

Algumas moedas depois, agarrou-se com seu sorvete, e sentada no mesmo banquinho de sempre, cansou-se de esperar.

O tempo se passou, e nada...

A pracinha ficava na quadra de sua casa, fazia sucesso entra a garotada pela gostosa sombra da quaresmeira que reinava triunfante no meio da praça.

Como de costume, a menina se deitou na grama fresca, e com o vento soprando no seu corpo, sentiu-se fatigada por seu insucesso, e quis descansar.

Foi quando lhe ocorreu o improviso e, armada de toda sua meninice, começou a se questionar: Quem sabe estivesse agindo errado? E se não fosse esse o meio mais correto para descobrir o sabor dessa tal vontade? Afinal, uma palavra tão grande como essa não seria de fácil trato, quem sabe ela não precisaria de mais tempo para apurar, como as compotas de figo de sua mãe, que mesmo depois de prontas, precisavam de um tempo a mais de repouso, para o açúcar entrar.

E tomou gosto pela "vontade"...

A boca se encheu de água, como se os figos dançassem diante de seus olhos... Tomou-se, portanto, dessa tal vontade! Mas como um desejo triunfante, doce e sagaz... Resolvera viver essa vontade, e mordida pela fome, voltou para casa, nas carreiras mesmo, seu jeito de andar.

Algumas garfadas depois, e satisfeita do figo, entendeu que vontade tem gosto de ter gosto. Era meio como sentir fome, mas ainda não saber o que desejar.

De banho tomado e com uma fita branca no cabelo, para combinar com seu vestido azul anil, lançou-se nas ruas. Sempre correndo pelas calçadas, intrigada com os degraus, sentiu não precisar de um motivo... Permitiu-se outra vez o "desejo", era o que vontade queria lhe contar.