"OLHOS DE ALUMBRAMENTO"

Este conto revela uma historia apaixonante e gostosa de ler, creio que ao ler, vossos olhos lagrimejarão, por tal emoção.

Será publicada em três partes.

Primeira parte

Por Amauri Silva, dedicado ao poeta Joel Costadelli.

OLHOS DE ALUMBRAMENTO

Para minha Ana em meu porvir

PARECE que hoje vai ser mais um daqueles deliciosos dias em que toda a parentaiada se ajunta em torno de uma fogueira, pra ficar com os amigos muito chegados, contando causos. A maninha e o tio J: Laércio sempre que arrumam de trazer batata doce pra ser assada enquanto eles estão reunidos em volta do fogo. Até a bicharada fica reunida nessas horas. A cadela malhada, que vive deitada com suas cinco crias, ainda serve de abrigo quente pros gatinhos que o primo Neno trouxe ainda esses dias. Quando tá todo mundo junto assim tudo parece tão impregnado de eternidade! Geralmente os dias de inverno são assim: tudo se ajunta pra poder espantar o frio, que só é forte mesmo de noite. Mas quem disse que o frio deve de ir embora?! No outro dia mamãe me mandou ir caçar algumas folhas de pata-de-vaca, porque o papai tava que não

podia nem levantar da cama de novo. Ela reclamava que quando ele tava bom não queria trabalhar, e que doente ela tinha que passar a noite toda costurando pra conseguir o sustento da família. Ir ver o doutor Nicolau ele que não queria, como de costume, mas sempre que prometia que se piorasse ia ver. Mamãe deu a idéia de chamar o doutor em casa, mas papai disse que não carecia disso, e ficou zangado com a insistência dela. Zangado papai sempre ficava quando mamãe falava do doutor e quando vinha com aquela história de falar de um tal dia que o doutor pediu pro papai me dar pra ser criada por ele, com muita fartura e saúde. O doutor me tratava com muito carinho e me chamava de querida... sempre!... e papai continuou zangando com mamãe. Saí logo que a maninha chegou da roça pra mamãe ter companhia pra ficar cuidando de papai.

Eu ia caminhando pelo caminho na beira do rio no terreno que há muito andam dizendo que foi comprado pelos estrangeiros que vão construir a barragem logo-logo. Eu sabia que já tinham começado a construir lá atrás da pedrona, mas que ainda não tinham chegado por esses lados de cá. O lugar por onde eu caminhava era tão bonito que eu não entendia pra que os estrangeiros queriam construir a barragem. Tio Berício sempre me disse que a barragem é muito feia e que faz muito mal pra todos e que acaba com a campina e que os peixes vão embora pra outro lugar e que tudo fica tudo muito infeliz, e feio. Eu ia caminhando pelo terreno, encontrei um filhote de chupim. O bichinho era tão mal-cheiroso e feinho que logo tratei de sair de perto, mas ele não parava de pipiar; então me aproximei e coloquei ele embolado na minha blusa. Na hora de pegar as folhas de pata-de-vaca que me deu trabalho. Com uma mão eu segurava o embrulho da blusa e com a outra, com um galho comprido, tentava puxar um ramo que tivesse folhas bem

bonitas pro remédio funcionar melhor. O chupinzinho pipiava o tempo todo que eu nem podia me esquecer e soltar a blusa embolada. Depois que eu peguei um bom punhado de folhas, tratei de voltar correndo pra casa, pois agora tinha dois doentes pra cuidar: o chupinzinho e papai. Quando cheguei em casa fui direto pra perto da bomba d'água, onde tinha uma árvore da copa muito larga com um buraco que eu mesma entrava quando menor. Coloquei o chupinzinho enrolado numa estopa velha lá dentro e fui em seguida levar as folhas do papai. Ao entrar dentro de casa, vi a parentaiada toda ajuntada e o doutor Nicolau saindo do quarto onde tava papai. Mamãe saiu em prantos do quarto e muitos dos parentes, até o tio Berício, estavam chorando também. Pensei que fosse por causa de alguma briga de mamãe com papai, mas logo a maninha veio e me falou com cara de raiva e choro: '!-Não carece mais dessas folhas velhas!"Eu não entendi porque ela falou aquilo, pois eu tinha escolhido as melhores e mais bonitas folhas daquela árvore, mesmo com o chupim pipiando no meu ouvido. Daí o tio Berício me abraçou e disse pra eu não ficar triste com a morte de papai, porque ele ia me levar pra morar com ele na cidade. Eu saí correndo pra ver o papai no quarto. A tosse eu não ouvia mais. Entrando no quarto vi o corpo estirado na cama, com as mãos cruzadas sobre o peito, então fiquei parada em frente a ele e continuei não ouvindo mais a sua tosse. Comecei a me alembrar de muitas coisas de quando ele era vivo. Me alembrei de como ele me carregava nas costas dizendo que era meu cavalo velho e saía correndo lá fora gritando que se eu não mandasse parar ele ia sair voando e que quando eu tava doente ele me levava doce escondido de mamãe no quarto porque se ela visse brigava, porque criança tem de comer comida forte quando ta doente, e fazia brinquedo de carrinho pra mim e maninha mas sempre falava que o meu era menor porque eu era menor e que maninha tinha de cuidar de mim e eu era sua princesinha e que ele ia me dar um vestido de princesa quando eu fizesse quinze anos e presentes, carrinhos, roupas, minhas bonequinhas e passeios e doces e carinhos e beijinho antes d'eu dormir... Então mamãe chegou perto de mim e disse que eu não precisava mais de ficar ali, que eu poderia ir pra fora pra não sofrer muito mais. Na minha cabeça só passava a idéia de que papai tinha morrido porque eu demorei em chegar com as benditas folhas do chá. Podia ter sido por causa do chupim - ele me fez demorar mais ainda pra pegar o remédio. Fui ver o filhotinho no tronco de árvore. Eu chegando lá vi a estopa no chão e não encontrei o animalzinho, tão-logo. Ele tava perdido, olhando em volta perto da bomba, bebendo água de uma poça formada por uma goteira que chorava dos canos velhos. Bebia água e pipiava no intervalo entre uma golada e outra. Cheguei perto e não sabia se tomava ele em mãos e cuidava dele ou se abandonava a avezinha danada pra que ela morresse à míngua como o meu pai, porque ela poderia ter sido a causadora da morte dele. Olhei com ternura e não consegui deixar o bichinho. Peguei ele nos braços e pus no ninho improvisado no tronco da árvore, afinal de contas eu era sua mamãe, pelo menos enquanto ele não podia voar. À noite foi o funeral de papai, com toda a família e amigos reunidos, como se fosse um casamento ou uma outra festa grande, daquelas que a gente vê parentes que a gente nem não sabia que eram parentes nossos. Chega a titia e diz: '! Drica, essa aqui é sua prima, filha do fulano de tal... esse é sobrinho da mamãe, ele é filho de não sei quem... “Se eu for contar, de tempo em tempo a noite toda foi assim. Logo que amanheceu fui acordada pelo primo Adalgiso, que foi tratando imediatamente de me levar pra brincar lá perto da pedrona, mas eu que nem queria ficar por lá brincando, porque só pensava em ir pra casa cuidar do meu chupim que podia precisar de mim igual que eu precisava de papai, mas agora ele não tava mais por perto. Depois de tanto tempo eu comecei a entender o que significava a morte, coisa que eu não sabia antes de papai ter morrido. Nem a morte da vó Celeste eu entendi direito!

O primo queria brincar de família. Toda vez que a gente tava junto e sozinho ele ficava querendo deitar em cima de mim, porque ele dizia que mamãe e papai deve de fazer isso de noite pra virar homem e mulher, mas eu que nem não queria: não era noite e eu não queria ser mulher. Mulher tem de trabalhar, casar e brigar muito com o marido. Eu gostava do primo e não queria brigar com ele, só queria ir embora. Adalgiso achou de me levar pra trás da pedrona, onde estavam começando a construir a barragem. Papai e tio Berício sempre me falaram pra não ir naquele lugar, que ele era muito perigoso; mas o primo quase que me levou arrastando. O lugar não era mais tão bonito quanto costumava ser quando eu era mais pequena ainda. Agora por todo lado havia barro, muito barro. Quando a gente olhava pra longe a gente via os paus velhos no meio do barro junto com os ossos de bois e de outros bichos. Não existia mais a campina florindo e nem o rio nem as lagoas em que a gente ia nadar, com água muito transparente. A paçoca nunca que tinha sofrido tanto com a sujeira das águas. O primo ainda que continuava querendo aquela brincadeira, mas eu insistia que não. Ele disse que eu só saía se eu brincasse com ele, então eu saí correndo porque eu não queria brincar mas queria ver o meu chupim. O caminho pra casa era rápido e o primo ainda vinha correndo atrás de mim. Cheguei em casa e tia já foi logo dizendo: Menino, onde você estava? Já faz tempo, faz uma hora. Te apronta e vamo embora agora, vai!” Foi a minha alegria: corri pro chupim, que tava no mesmo lugar. Levei alguma comidinha pra ele. Desta vez levei água também. Um pouco mais pro lado vi a cadela malhada com sua ninhada. Agora já tava anoitecendo, era fim de tarde. Avistei de muito longe uma carroça velha com uma grande caixa em cima. Fui logo gritando e falando pra mamãe o que tinha visto e ela me respondeu que era uma geladeira que o seu Zé Passarinho tinha dado pro papai antes dele morrer, e agora resolveu de zéf. Assim que o seu Zé chegou perto percebi que a geladeira era vermelha de tom escuro. Eu nem não sabia se toda geladeira era como aquela, daquela cor e enferrujada atrás. Como era de se esperar, mamãe chamou seu Zé pra entrar enquanto ela preparava um cafezinho pra ele. Desde quando papai era vivo nossa família sustentava esse costume; não só a família: todo mundo que eu conhecia, que não era nada grande. Depois de estar na sala ansiosa pelo café que mamãe preparava, permaneci parada em pé na porta, como se estivesse esperando ordens de alguém que fosse. Pra ser sincera, eu queria entender porque todo mundo chamava aquele homem de Zé Passarinho. Por que Passarinho? Ele não tinha nada de passarinho. Não tinha asa nem bico. Pena eu só via uma no chapéu dele. De repente ele começou a falar comigo, sem pipiar, perguntando o que eu fazia de bom na vida. Fui logo contando do meu chupim; que ele era pequeno e agora tava ficando bonitinho, porque eu cuidava muito bem dele. Perguntei, sem organizar direito o pensamento, por que chamavam ele de Passarinho. Aquilo não me saía da cabeça. A resposta que o homem deu me fez tremer as pernas e gelou o meu peito: '! Eu adoro comer passarinho frito, Mamãe chegou e já foi pedindo desculpas pro seu Zé pelas minhas inconveniências. O homem que se afeiçoava pra mim como um monstro, com aquele bigodão enorme e seus dentes escassos e amarelados, dedos cheios de anéis de todos os modelos e roupa estranha, ofereceu de levar mamãe até perto da igreja, que ela precisava de rezar pela alma de papai. Terminando de dizer isso disse que quando eu crescesse se casaria comigo - coisa que falava de quando em quando. Mamãe fingiu resistir à oferta, como se não quisesse aceitar o incômodo, mas acabou dizendo que sim, o que constituía pra mim um pesadelo. Não falei nada. Virei e saí correndo sem olhar pra trás, pra proteger o chupinzinho do predador. Fiquei lá até a hora que mamãe me chamou pra me trocar: eu tinha de ir na igreja. No caminho mamãe pediu pro seu Zé

Passarinho deixar a gente na casa da sua comadre, a Dona Francisca. Ela era minha madrinha de batismo, como mamãe gostava de dizer. Sempre que eu fazia aniversário a madrinha me mandava presentinhos, fosse roupa, brinquedo e até mesmo livrinhos. A madrinha mandava doce toda vez que alguém de perto de casa ia visitar ela. Eu gostava da madrinha, mas naquela tardinha eu só queria saber de ir pra casa, nem não queria saber de comer os doces e gostosuras que ela teria pra me dar. Mamãe, profunda desconhece todas de minhas angústias, tava era preocupada em saber se minha madrinha já tinha melhorado da sua enfermidade companheira de anos. Ela nem foi no enterro de papai de tão desacorçoada que tava da vida, mas eu continuava querendo o meu chupim.

Continua

Amauri Silva
Enviado por Joel Costadelli em 22/06/2013
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