"Olhos de Alumbramento"

Eu nem que sabia se era a mesma estrada ou se era outra, mas era muito parecida.

Além disso, depois de ter saído da igrejona eu não conseguia ver as coisas com a mesma dimensão que costumava ver antes.

Tanto brilho de metal precioso e tanta beatitude como aquela que eu vi e senti me deixaram meio variada, desprovida de grande ciência pra calcular tamanho ou reconhecer caminho.

De quando em quando eu olhava pra mamãe e ela tava chorando de mansinho, sem soluçar e sem fazer qualquer ruído - isso era verdade - até o momento que ela sentou no chão e começou a chorar sem controle.

Ela se curvou pra dentro dela mesma, que nem uma criancinha ainda no bucho da mãe, e chorou sem se mexer até que caiu no chão completamente indefesa.

Eu não sabia o que fazer.

Corri pra perto dela e comecei a chorar e a abraçar e pus sua cabeça no meu colo e tentava acalentar mamãe.

Assim a noite foi se aproximando, quando de muito longe avistei uma figurinha pequenininha demais.

Continuei do mesmo jeito que tava sem me mover por bastante tempo, até que a figura se transmudava em um caminhão cheio de gente suja e com foices penduradas por toda parte.

Pararam mais ou menos perto da gente e desceram perguntando o que que tinha acontecido.

Falei pra eles que mamãe caiu e não levantou mais; afinal, que mal havia em contar a verdade pra eles? Os homens perguntaram onde eu morava e eu não sabia o que dizer: não sabia onde era a minha casa.

Falei pros homens que era perto da barragem que vão construir e eles descobriram certinho onde era o lugar.

Demoramos pouco tempo pra chegar em casa.

Logo que os homens chegaram comigo e com mamãe a vizinhança toda já saiu pra ver o que que tava acontecendo.

A maninha desesperada agarrou mamãe e junto com os homens colocou ela na cama em que ficava papai quando tava doente.

Os homens contaram toda a história pra maninha e pra dona Benedita, a vizinha que tava em casa.

A maninha sempre que olhava pra mim com cara de raiva, mesmo eu não retribuindo sentimento igual ou parecido pra ela.

Sempre na minha vida eu ouvia mamãe falar que a maninha era que nem bicho do mato, que tinha o espírito do vovô.

Nós duas nunca brincamos juntas, era sempre eu com os primos ou com a criançada da dona Benedita, porque quando a gente ia brincar com a maninha ela logo vinha de nos bater e ficar com raiva.

Quando o papai era vivo ela fazia de tudo pra agradar ele, mas na hora de tomar a sova ele ia sempre pra cima dela.

Mamãe nunca que falava nada pro papai, só quando ele vinha pra me bater é que ela virava bicho.

Ela e a vó Celeste, que papai respeitava mais do que mamãe.

Depois de toda aquela gentaiada ter acudido mamãe e trazido a gente pra casa, eles se ofereceram pra chamar o doutor Nicolau no caminho da volta deles, porque eles conheciam bem o doutor.

A dona Benedita disse que o doutor viria correndo - o povo se foi, mesmo sem tomar um cafezinho que fosse.

Quando os homens saíram era muito tarde da noite.

Sabia disso porque ouvia barulho de coruja lá na árvore da ponta da pedrona pipiando.

Mamãe continuava sem fazer roído nenhum, apenas com os olhos abertos e fixos como os olhos do corujão que eu tinha visto uma vez de perto quando eu era mais pequena e levei um baita susto.

Às vezes ela suspirava bem fundo, e era só.

Agora eu podia cuidar do meu chupim que já tava coberto de penas por causa do tempo que tinha passado e continuava passando, sem que mamãe desse qualquer sinal de recuperação final.

Sempre tinha alguém em casa com a gente, cuidando de mamãe: a dona Benedita, as fi1has do seu Neneco é uma preta muito engraçada que todo mundo chamava de dona Azilá - diziam que ela era fi1ha de escrava e que a mãe dela tinha ganhado alforria de um sinhozinho que engravidou a mãe preta.

Além de cuidar do chupim e de mamãe, eu cuidava também da casa mais maninha.

O chupim já sabia voar, tinha aprendido mas não queria saber de ir embora.

Sempre que voava voltava pro mesmo lugarzinho.

Também... Acho que se resolvesse partir pra sempre eu nem ia me importar tanto assim, afinal o bichinho tinha de viver a vidinha dele.

A maninha continuava a trabalhar na roça e eu cuidava dos afazeres domésticos e ainda arrumava tempo pra estudar na escola que ficava bem longe de casa, mas comecei a gostar muito da escola.

Os dias iam passando e as semanas pareciam ficar cada vez mais curtas e corridas.

Até os meses passavam a galope à minha frente; porém mamãe só apresentava como sinal de evolução se levantar pra ir ao banheiro e voltar sozinha para o quarto.

Mamãe parecia ter perdido a vontade de viver.

Às vezes ela olhava em nossa direção e uma enorme ansiosidade tomava conta de nós, parecia que ela ia falar alguma coisa, com um leve sorriso esboçado naquele rosto miúdo, sofrido e desencantado de tanta descadeirada que tinha ganhado da vida, depois de ter lutado muito por causa de muitas coisas.

O meu chupim, porém, recebia a visita de quando em vez de um chupim que provavelmente seria o seu parceiro.

Eu não achava mais certo ficar indo mexer no ninho aconchegante que eles haviam edificado no lugar daquele ingênuo ninho que eu construíra com estopa velha assim que o acolhi.

Na verdade comecei a deixar de lado o chupim e cuidar mais de outras coisas, mas sem nunca deixar de gostar dele.

A escolinha em que eu estudava desde pequena, tinha sido substituída por uma outra bem maior e melhor construída pelo governo, num lugar mais perto de casa.

Havia até um ônibus que nos buscava: cortesia de um tal coronel Ângelo, candidato a prefeito da cidade.

Nesta altura da vida eu tava com meus quinze anos e pensava em estudar e ser médica pra poder ajudar as pessoas de quem eu gostava, por isso me dedicava cada vez mais aos estudos.

Mamãe tava com a idade avançada e com o corpo corroído pelo passar dos anos, entretanto, o tempo todo que havia passado não trouxera seu espírito de volta àquele corpo moribundo.

Ela continuava ausente do mundo.

Certo dia acordei e, como era comum fazer, preparei o café para ela antes de eu ir para a escola.

Qual não foi minha surpresa ao entrar em seu quarto e vê - lá debruçada com um dos braços estendidos tocando o chão frio! Larguei tudo naquele chão e corri para ela, virando - a de barriga para cima.

Eu não sentia mais sua respiração e nem resistência de suas juntas enrijecidas pelos anos que conseguiram impregnar rugas em sua pele, mas não falharam em tirar a beleza natural daquele corpo.

Percebi que havia perdido mais uma importante pessoa na minha vida... Sentei e chorei ainda com seu corpo frágil e desprovido de vida: mamãe morrera de novo em minhas mãos.

Tudo aconteceu muito rápido e o resto todo seguiu como seria de se esperar.

Depois do ocorrido, tudo parecia ter mudado de velocidade.

Eu tinha tomado a decisão de ir morar com o tio Berício na cidade grande e assim minha vida ganhou um ritmo intenso e com muitos momentos de alegrias e também tristezas.

No entanto, o maior dos alumbramentos de que eu me lembro foi quando depois de muitos anos e acontecimentos em minha jovem e diferente vida, eu retornei para a minha antiga casa e corri, como se ainda fosse aquela menininha que via o mundo colorido, para ver a casinha do meu amiguinho voador.

Que surpresa tive ao ver que o meu chupim havia se transformado em mais de dez, e todos continuavam morando no mesmo ninho e rígido no buraco do tronco de árvore pertinho da bomba d'água.

Agora eles eram uma família numerosa e assumida, com direito à vida, velhice e morte.

Quem sabe até brigas! Eles escolheram o velho e aconchegante ninho.

Quanto a mim; deverei ir para a cidade grande estudar em melhores escolas e trabalhar e, talvez algum dia, escrever um livro sobre a história da minha vida.

(São Paulo, 05-V -12-VI de 2000)

Este conto me foi escrito por um amigo e irmão do coração, professor e musico. Amauri Silva.

Joel costadelli.

Amauri Silva
Enviado por Joel Costadelli em 24/06/2013
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