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MEU MESTRE DE LATIM
 
 
      O homem era um cobrão latinista – e da melhor marca. Nunca vi alguém, igualmente a ele, desabotoar um morto idioma com a língua em tamanha versatilidade. O professor Luiz (sic, assim, com este “z”) tinha todas as credenciais para desbravar um vocábulo latino, fosse lá da etimologia que fosse. Ele quase saíra padre; foi discípulo de seminário por longos anos e tudo o mais.
 
      De tão carola do credo católico, más línguas diziam à época que andou a poucos milímetros de ficar tantã, a bem dizer, tornar-se um amalucado. Magro, baixinho e de boa largura na fronte, um par de óculos miúdos lhe estava sempre a enfeitar a ponta do nariz. E de olhos muito acesos. Pois ai de quem ensaiasse algum adiantamento em suas salas de aula.
 
      As declinações latinas lhe borbulhavam ao portal boca com a rapidez que um locutor esportivo descreve os lances de um clássico domingueiro pelas ondas do rádio. Ô homem de habilidades falantes! Um papagaio loquaz, quando a função lhe caía de ser o ensino do velho idioma de Marco Túlio Cícero.
 
      Além do latim, também lecionava o português e, aí, não era menos brilhante nem tagarela que naquela língua arrevesada de inúmeros poetas do império romano. Dele fui pupilo nas duas disciplinas, contudo prefiro realçar aqui os dotes do rigoroso e excêntrico mestre-escola. Mestre-escola, pois era proprietário de um educandário particular, onde o regime era o mesmo que aprendera com os padres.
 
      Uma vez, passando pela enorme praça que hoje leva o nome de Gustavo Barroso, antiga Padre Antônio Tomás, bem à frente do histórico e glorioso Liceu do Ceará, que tem em um dos lados o quartel central do Corpo de Bombeiros, o professor Luiz (o sobrenome não vem ao caso) presenciou um fato desumano e inusitado.
 
      Ao pé da estátua do ilustre advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista cearense, e até integralista que Gustavo Barroso foi, o nosso latinista observou um grupo de liceístas que se divertia com um bêbado.
 
      Como em roda de ciranda, o pobre bebum não se aguentava nas pernas, a bambear o corpo, só que não caía: tentava o equilibrismo. Um aluno pegava-o pelos fundilhos das calças e o empurrava para o lado oposto. Outro malvado, de lá, repetia o gesto e assim o bebum não era liberado da diversão. Tempão assim, e o olho do mestre nos liceístas.
 
      Mão no quarto, olho remexendo na caixa, óculos bem aprumados e tudo a enxergar, o professor Luiz reconheceu quatro de seus alunos e se foi embora. Aulas iniciadas, o mestre começou a pregação. Onde havia desalmado que tivesse feito hora com o bebum a coisa não ia prestando.
 
      Em nossa classe, por exemplo, se me não falha a lembrança, uma terceira série do antigo ginasial, amoitava-se um dos “malfeitores” que, por azar do tal, era do bairro próximo onde o mestre tinha residência e educandário montados.
 
      Simplesmente não houve aula, neste dia. Ou melhor, a aula toda foi de esculacho e boas regras de bem viver. Como era o último tempo, foi o quarto palavrório derramado pelo exigente mestre. Segundo o próprio, já tinha ele prestado conta com três outros infratores.
 
      O professor, então, utilizou de outra habilidade, ainda não revelada, para realizar a sessão de lavagem cerebral: a oratória. E falou bonito, de nos deixar boquiabertos. Mas, a intervalos, esborrachava um bordão que ele improvisara. Apontando para o colega que pegara no fundilho do bêbado, o nosso herói mandava o verbo, chega troava:
 
      – Gente, esse menino é ruiiiiiiim! – e reiterava e rasgava bem o acento emocional.
 
      Agora vamos à vez da sorte: o “menino ruiiiiiiim” do bairro do professor Luiz virou, anos depois, um advogado. Espero só que nunca haja empunhado os fundilhos da calça dos seus protegidos. E uma coisa eu garanto: o mestre não gastou em vão o seu latim, ao reprovar os “réus” que fizeram bola de tênis do bebum.
 
Fort., 15/09/2013.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 15/09/2013
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