O DEVOTO DAS ALMAS

 
      Vou contar um causo acontecido na década de 1940, parece que antigamente o povo era bem mais religioso. No meio rural as pessoas eram mais fervorosas em suas crenças, mas pela falta de conhecimento às vezes misturavam um pouco suas devoções tornando-as confusas e até mesmo difícil de serem aceitas pela igreja oficial.
     No universo rural ou caipira os rituais da igreja misturavam-se com crendices populares, havia espaço para as benzedeiras e curandeiros, era o que alguns estudiosos do assunto chamavam de catolicismo popular, algumas adaptações que por força do tempo e dos costumes foram incorporadas ao catolicismo de forma a deixá-lo mais atraente ao sertanejo, sem o rigor do catolicismo romano.
     Dentre as devoções todas, dos mais variados santos, cada devoto escolhia o santo que mais lhe agradava, ou que tinha atendido seu pedido na hora da necessidade.
    Nesse meio todo ás vezes aparecia um que se dizia devoto das almas, não estamos falando de almas penadas, eram almas boas que socorriam seu devoto quando este precisasse de ajuda e segundo acreditavam, não o deixava só. Dito isto vamos ao ocorrido:
    Um rapaz que morava no sitio de sua família, começou a namorar uma moça de uma fazenda vizinha e isso fez com que ele arrumasse um inimigo sem nem mesmo saber, era um também jovem da fazenda que era apaixonado pela moça e não se conformava com a idéia de perdê-la.
   O rival sempre que tinha oportunidade provocava-o tentando encontrar um motivo para brigar, mas o outro um rapaz bem educado que não gostava de confusões, procurava um meio de evitar encontro ou se encontrasse não ligava para suas provocações deixando-o  ainda mais irritado.
    Vendo que não conseguiria motivo para brigar com o namorado da moça, este começou a pensar num meio de tirá-lo do seu caminho, fazer uma tocaia para eliminá-lo.
   Num sábado à tarde o rapaz foi para a casa da namorada, pois estava marcado para aquela noite um grande baile que seria realizado no salão da máquina de beneficiar café, já que este era grande e estava desocupado por não ser época de colheita.
    Durante o dia foi feito uma boa limpeza no salão, o assoalho e as paredes foram cuidadosamente varridos para tirar a poeira e as teias de aranhas. Num canto do salão arrumaram um tablado de aproximadamente um metro e meio de altura com uma cadeira em cima para o sanfoneiro.
     Numa das tulhas foi improvisado um barzinho, colocado uma mesa do lado de dentro encostada a porta, um homem ficava ali para servir a bebida que era a cachaça, conhaque, alguns litros de batida de diferentes sabores para as mulheres ou quem não gostava de bebida forte.
   No início da noite o povo já foi chegando e a dança começou animada, os homens, com as roupas e chapéu de dia santo, alguns com botina nova nos pés rangendo no assoalho, as mulheres com vestidos de chita novos, cabelos com tranças ou preso por um laço, dançavam alegremente.
   Em meio a essa alegria toda havia uma pessoa triste, ainda mais amargurado vendo a felicidade do casal que dançavam e sorriam sem parar. O despeitado não suportando mais, resolveu que naquela noite poria um fim naquele romance. Sabendo que seu desafeto voltaria sozinho para casa, pensou seria o dia certo para realizar seu intento.
   Antes que terminasse o baile ele saiu, passou em sua casa pegou uma espingarda que já estava carregada e foi para o caminho que o moço faria para ir para sua casa, escolheu um lugar e ficou à espera.
    Terminado o baile o rapaz deixou sua namorada em casa despediu-se e pegou o caminho para o sitio onde morava. Saindo da colônia onde a moça morava, passava numa ponte, atravessava um lote de café e entrava por um pasto com uma capoeira. Quase chegando à divisa da fazenda com o sitio tinha uma estrada abandonada toda esburacada, onde só passavam a cavalo ou a pé.
   Num trecho que o caminho era fundo com barranco dos dois lados, numa curva em cima do lado esquerdo tinha uma grande moita de capim ali se escondeu o rapaz, com a espingarda para esperar o namorado da moça.
    Era uma noite de lua cheia, de repente ele olhou no inicio da estrada velha vinha o vulto de uma pessoa, ele engatilhou a espingarda e esperou, mas quando já vinha mais perto, notou que o rapaz não estava sozinho como esperava, vinha um grupo de pessoas e ele no meio, estavam conversando mas não entendia nada do que diziam, passaram sem que pudesse atirar. Ele achou aquilo muito estranho ficou um tempo com a espingarda na mão olhando sem entender pois não moravam ninguém por aquelas bandas, somente a família do rapaz, mas não estavam no baile.
    No outro dia ainda pensando no que aconteceu o agora confuso e angustiado rapaz, não conseguia encontrar uma explicação para o ocorrido. Procurou um velho que morava há muitos anos na fazenda, era benzedor muito respeitado por todos, contou-lhe o caso e este disse ----  Só tem uma explicação para isso, ele é devoto das almas e foram elas que o protegeram, é melhor você esquecer essa moça.
    Desse dia em diante ele não os incomodou mais e foi assim que o casal pôde finalmente viver em paz.
João Batista Stabile
Enviado por João Batista Stabile em 16/11/2013
Reeditado em 17/03/2019
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