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O INVETERADO VÍCIO DO DR. M
 
 
      O vento era só o que o vinha carregando, mundos afora, tão magricela de pessoa ficara o Dr. M. Já o conheci assim – esquálido, quase cadavérico – um embrulho de ossos a vagar pelas ruas do bairro de média classe média.
 
      Conceituadíssimo, admirado por todos, em dias idos, mas até enquanto pôde aprumar as pernas, ainda com alguma fortaleza, indo e vindo à nobre labuta em seu consultório de dentista, mesmo quando já principiava a tornar-se um farrapo de gente.
 
      O alcoolismo apoderara-se completamente do exímio odontólogo, tão querido e admirado que fora, fazia não tanto tempo.
 
      Pode-se dizer que o Dr. M já não era possuidor de vontade própria, uma vez que o vício lhe infernizara a vida, e pior, sem que ele próprio nem sua ilustrada família nada pudessem fazer-lhe em socorro.
 
      Metido em roupinha leve, à semelhança de pijamas, pés em chinelos comuns, e sempre balouçando ao sabor das aragens, quem o visse assim, tão simples, tão frágil, não acreditava que ali, naquela magrém, residira um profissional de primeiríssima ordem.
 
      Formado e bem anelado, por universidade federal, doutor para todos os fins de direito e ofício, o desventurado dentista era oriundo de família de linhagem, com toda a irmandade e parentalhas também formadas, portadoras de suntuosas mansões e carrões de luxo, além de vultosos tostões amealhados em contas bancárias.
 
      No nosso quarteirão, morava uma senhora que fora cliente do Dr. M, aquele caco de sujeito pelo qual, para qualquer um que o não conhecesse a identidade, jamais lhe daria em troca uma cachimbada de tabaco.
 
      Pois a mulherzinha, já de algodão muito branco nos cabelos, fazia questão e muita lambança para realçar a qualidade e a resistência da dentadura que portava havia anos e muitos anos. E a tal perereca, para o governo de todos, em particular para o zé-povinho chinfrim, ali do bairro, era fina arte das mãos de mestre do Dr. M.
 
      Mas o pobre cidadão, apesar de tanta fama e escama, até em passado recente, agora virara um traste inútil, mercê e desgraça da obra infame do alcoolismo; vício dito “social”, todavia igualmente vício, coisa corrosiva, como o crack, o tal pó branco e a erva maldita.
 
      Sem mais possuir safra nenhuma, no quesito das finanças, de pecúnia zerada, já que fechara e largara o consultório, a família do nosso dependente etílico não lhe botava mais à mão um vintém, sequer um vintém. O intento era claro: dar-lhe um basta às carraspanas diárias.
 
      Cedinho, tremendo feito um pendão de trigo ao sopro d’algum nordeste mais afoito, o Dr. M ia bater ao comércio de meu pai e, na maior franqueza e na mais refinada educação...
 
      “– Companheiro, eu não tenho dinheiro. Mas, por favor, me bote uma dose de aguardente. Por favor!”
 
      E meu pai sempre aquiescia. Deitava a pinga no copo, sem ônus nenhum. Sabia que não estava agindo direito, pois corroborava com o arraigado vício do Dr. M. Contudo, pelo menos, após a primeira dose, o gajão já cessava aquela doida e enorme tremedeira.
 
      Tempos após, para sorte sua ou maior infelicidade do caquinho de homem que ficou o conceituado dentista, este se aparceirou de outro bebum do bairro. Aí choveu em sua horta. Ao contrário do Dr. M, sempre na pindaíba, o papudinho que se lhe fez de amigo e salvador da pátria pertencia ao quadro do oficialato reformado do Exército e só andava pingando contos de réis.
 
      Com exceção de uma vez ou outra, quando o tenente lambanceiro não entrava também nas sessões de pândega, nunca mais o nosso anti-herói odontólogo passou sede da água que passarinho não bebe.
 
      – Vade retro, para todo e qualquer tipo de vício!
 
Fort., 05/02/2013.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/02/2014
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