Foto da Cachoeira do Cerradão, dia 23/03/2014


A quem nunca soube dos costumes antigos de nossa gente, pode até parecer absurdo que um pai desejasse desfazer-se das filhas mulheres o mais breve possível, para jogar a incumbência do sustento ao marido arranjado.
     
Mas eram coisas das necessidades e dos costumes daquele tempo e Seu João Clemente depois de muito pra lá e pra cá, chegou um dia em casa avisando à filha:
     
—Crimintina, minha fia, ieu já arrumei marido procê! É um rapaiz de famia pobre, mais é moço dereito e trabaiadô.

A mocinha, nem gostou e tampouco desgostou. Consentiu. Sentada no banco da sala, de mãos cruzadas entre os joelhos, com o pai de pé a sua frente, olhava o assoalho bem varrido, imaginando a vida que viria...
     
Naquele final de tarde um passarinho cantou lá fora, parecia explicar a ela que coisas do mundo eram mesmo daquele jeito.

Clementina do João Clemente e Antônio do Chico Cunha só se viram pouco antes do casório. Foi tudo muito simples, sem as pompas que cá imaginaríamos. Mas, com todas as vias de fato para tornar-se sacramentado.

Seguiram para o arraial a cavalo. Ela bonita de véu, grinalda, vestido branco e flor de laranjeira. Ele de terno riscado, a mesma roupa que o pai vestiu quando se casou. A comitiva formada por gente a pé, um pouco de gente montada, revezando. Os mais idosos iam num carro de bois.

 Já voltavam, quando Seu João Clemente registrou alguém no meio dos convidados e se achegou ali mesmo, dum rapaz apontando idade pra Adelina, a mais nova que ficava.

A casinha dos dois foi feita perto donde ela vivia com a família. De pau- a- pique e chão batido. Com uma bica d’água ao lado, onde Clementina era vista todo dia, cumprindo sua lida nesse mundo.

Antônio, nos primeiros dias de homem de respeito que agora era, mostrava, no indo e vindo do dia, que já andava meio desacorçoado do casório. Isso não passou despercebido pelos companheiros de roça.

Mais de um mês depois do casório... De chapéu no peito, com todo o respeito que existia nessa vida, estava ele na frente da casa de Seu João Clemente, querendo conversar coisa séria. O sogro, ardido do sol de lascar daquele dia, deu uma coçada preocupada no queixo barbado, mandou todo mundo sair da sala:

—Ocêis tudo caça um rumo, qui ieu mais meu genro pricisamo proziá cunversa de home.

 —Assenta aí no banco, Antõe! Chegô na hora da janta... Num vai querê cumê uns torresmo mais tutu de feijão cumigo?

—Agradicido... Num tô cum fome não, meu sogro... Mi adiscurpe chegá fora de hora.

Antônio havia ensaiado uma cara de bravo pelo caminho, porém, na hora de botar os “pingos nos is”, se pôs meio ressabiado na frente do sogro.

— Pó falá o qui te traiz aqui Antõe! Tô disconfiado qui boa coisa num é! Bradou o velho João Clemente, com o garfo em punho enquanto Antônio só se acanhava mirando o poente pela janela lá na serra.

—Pur acaso, vei recramá da Crimintina? Cê num ta satisfeito cum tempero da cumida qui a tua muié tá fazeno?

—Num sinhô, ela faz um cumê bão dimais da conta! – Respondeu Antônio falando a primeira alguma coisa.

—Ela num cuida bem da casa?
     
—Num é isso não sinhô! A nossa casinha ta limpa qui dá gosto! Crimintina arruma tudo direitim, as panela tá tudo briano im riba do fugão.
          
— A minha fia num tá cuidano bem da tua rôpa, é isso?

— Num sinhô, nunca visti rôpa tão limpinha assim, ela inté sabe custurá.

— Ah Antõe, ô num sei o qui tá te contrariano, oia qui ieu num sô adivinhu, ô ocê disimbucha logo, ô ocê vai simbora, qu'eu num criei fia pra tê recramação adespois di casada.

Uniu-se a irritação dum com a vergonha e medo do outro. Fez-se um silêncio penitente entre os dois, até que Antônio arrancou do fundo da alma a força pra dizer:

—Ô sô João...É qui...

— Fala homi de Deus!

— Sab quié?

— Ieu num sei de nada não, uai! Ocê inda num falô!
          
— É qui...

—Fala pelarmordedeus, qu’eu já tô aguniado!

— É qui... Ela num qué...

 — Ela num qué o quê, Antõe?

 — É Sô João, é qui a Crimintina, ela num qué...

 — Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! Antão é isso?

— É... Ela fogi dieu... Num qué fazê aquês trem cumigo!

Desprendeu-se a coragem de Antônio e seguiu-se a resposta histórica de Seu João Clemente:

— Amarra a Crimintina na cama e faiz os trem á força, Sô pamonha! Ieu tive qui fazê isso cá mãe dela!

Anos depois, as más línguas, ainda diziam que se ouvia muito uma coisa na roça onde os dois trabalhavam. Era a Clementina sussurrando, ainda meio acanhada:

— Ô Antõe... Ocê vai querê marrá ieu hoje de noite?


O casal teve oito filhos e comemoraram juntos as bodas de ouro. Na cabeceira da cama deles, nunca deixou de haver uma corda. O porquê nunca se soube... São segredos guardados no quarto duma casinha que dizem ainda existir. Histórias de vidas que o tempo vai apagando.  Coisas acontecidas no coração do fantástico sertão mineiro

         

                                         Fotos da autora                  


Este texto faz parte do Exercício Criativo - Pingos nos Is
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Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 24/03/2014
Reeditado em 24/03/2014
Código do texto: T4741480
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