CONVERSA PRA AMOLAR O BOI

Nóis tava assim como quem qué, mais num qué. Zequinha Muxiba falou pros companheiro, cumo se tivesse convocando pruma guerra:

— Vamo, gente, o rio tá cheio, tá bom demais pra pegar mandi, trairão e pacu. Se oceis num qué ir, tã bão. Só qui eu mais cumpadre Calimério já decidimo, tamo com a traia pronta, vamo amanhã cedinho.

— Ara, Zequinha, o tempo não tá ajudando, não. Jogar anzor agora é só pra dá banho nas minhoca. Além disso, cumpadre, a beira do rio deve tá que é barro só, perigoso de iscorregá...

Eu mais Limirio e Sinfronio num tava preparado pra sair, assim no estalo. Mais a gente era companheiro de pescá junto de mais de vinte ano, e nunca houve asseparação da turma. Onde um ia, os outro também ia, nem que fosse pros quinto dos inferno. Companherada pro que desse e viesse.

Calimério tomou partido do Zequinha:

— Acho que tá bão de pescá, sim, Manduca. E num farta muita coisa pra nóis ajeitá. É só o tempo de campiá uns minhocuçu. Aliais, é só chegá cum o inxadão ali no barranco do Iscurrega-lavai-um e enche as caixinha de isca.

Então, fumo. Eu acertei minhas vara, os anzóis, mais um bornal bem fornido de passoca de carne seca mais os apetrecho pra fazê café: latinha de café muído, o mancebo mais o cuadô, e a caçarolinha pra fervê a água. Enrodilhei a tarrafa e meti tudo num saco. Zequinha tinha uns apetrecho mió, levava umas panelinhas, e argum mantimento: arroz, um pedaço de toicinho, farinha de mandioca, essas coisa. Calimério entrava com a condução: aprumava o chevrolé-36, um caminhãozinho valente, bão dimais na estrada de barro. Num dispensava as corrente pras roda, mode vencê os lameiro. Limírio tinha uma barraca de lona grande, com aqueles gancho e cordinha pra todo lado, que só ele sabia armar. Sinfrônio gostava mais era de caçar, mais era bom companheiro de beirá rio. Ele ismerava na sua espingarda de dois cano e na munição.

Era uma sexta-feira de manhãzinha, o tempo tava feio, as nuves prenha de chuva, ameaçava cair a quarqué instante. Nóis cumecemo a ficá cum arreceio foi no que a gente beirou o rio. Tava cheio por demais e continuava subindo. Era umas duas hora da tarde e tava escuro de chuva. Nóis fumo preparado pra ficá o sábado mais o domingo, e se rendesse, a gente esticava até no meio da semana.

— Hoje já tá muito tarde, num vai dá pra pescá de anzol. Mais a gente pode armá a rede, aqui nesse cantão tá mais sereno, deve tê muito pacu e traíra. — Zequinha era mais atilado nessas coisa e foi logo puxando a rede da carroceria do chevrolé. — Me ajude aqui, cumpadre Manduca.

Enquanto eu e Zequinha amarrava a rede, Limírio armou a barraca, usando uma das beirada da carroceiria do caminhãozinho. Sinfrônio deu uma oiada pelos arredor e cismou que tava bom de armá uma arapuca pra pegá arguma ave menos arisca, ou argum passarinho, que ele gostava também de tê uns bichinho de pena preso na gaiola.

— Amanhã nóis tem arguma coisa pra assá bem cedinho. — Ele era caprichoso, tinha uma arapuca de arame, um araminho bem fino, tinha até a parte de baixo de arame, de tar forma que a arapuca era fácil de desarmá, mas quando prendia o animar, não deixava escapar, de jeito nenhum. Armou a arapuca assim no meio do caminho entre a marge do rio e um matinho, coisa de um metro acima da beira do rio. Esparramou umas quirera e grão de mio quebrado, pra atraí os bichinho. — Se argum bicho vier por aqui, vai caí na arapuca, ara, se vai!

Intão, nóis fiquemo ajeitando as coisas debaixo da barraca. Calimério fez um foguinho bão, que além de servi pra fazê café, isquentá uma comidinha, espantava as muriçoca que ataca de tardezinha, e os pernilongo que atrapaia o sono.

Cunversa vai, cunversa vem, o Sinfrônio limpando sua cartucheira de dois cano, passando a estopa nos cano, na coronha, o Limirio pergunta:

— Cê sabe pra que qui é bão essa cartuchera de dois cano, cumpadre?

— Uai, cumpadre, morde caçá animar maior, se um tiro não for suficiente, mando outra bala no bicho, é tiro e queda!

Cumpadre Limirio, que tinha uma birra dos cantadô de viola, expricou:

— Essa espingarda de dois cano é especiar pra uma coisa, cumpadre: matá dupra de cantadô de musica caipira.

— Ara, cumpadre, num arenga! — Sinfrônio num achou graça na brincadeira. — Oia, pra falá a verdade, certa ocasião eu matei pra mais de cem jacu, sem carregá a espingarda.

— Tá mangando de nóis, cumpadre?

— Foi certa veis, lá pras banda do Pantanal do Mato Grosso. Os companheiro tava na canoa, no meio do rio, eu mais minha espingarda aqui na beira do rio. Queria pegá uma oncinha que tinha deixado rastro perto do nosso arranchamento. Quando dei de fé, vinha um bando de jacu voando, travessando o rio, uma nuve preta de tanto bicho. Deixei as voadora atravessá o rio, pra mode num perdê nenhuma ave que caísse no rio. Intão comecei a dispará. Era eu atirando e os bicho caindo. Fui contando uma, duas, três...dez, vinte, trinta...cincoenta, sessenta...noventa, cem. As bicha passando e eu atirando sem parar.

— Peraí, cumpadre, cê tá dizendo que matou mais de cem jacu sem parar...nem pra recarregá a arma?

— É isso mesmo, cumpadre! Tinha que aproveitá o bando passando, não dava tempo de recarregá a cartucheira.

— Truco, bandido! Vai mintir assim nos quinto dos inferno!

— Pois eu tou agora me alembrando duma história que o cumpadre Armandinho me contou outro dia desses. Ceis sabe, o Armandinho também gosta de caçá, tá sempre com a espingardinha de lado. Tá fazendo uns meis, a cerca dos fundo da fazendinha dele, a que dá pra aquela mata do Grotão, cêis sabe. A cerca tava arrombada, e ele lá foi cunsertá. Levou uns pedaço de arame farpado, uma cuia de grampo, martelo, e a espingarda, que ele num dispensa nunca. Inda mais que na mata do Grotão tem rastro de jaguatirica pra tudo quanto é lado. Intonces, ele tava lá com sua traia, consertando a cerca. Quando viu, na beira do mato, uma oncinha dessas atrevida, que entra nos pastos, persegue as criação. O cumpadre Armandinho pega a espingarda e vai botar a munição, quando percebe que tava sem bala. Tinha se esquecido das balas. E a oncinha vinha vindo, pata atrás de pata, oiando pro cumpadre. Mas o homem é danado, num se intimida fácir, não. Oiou pra cuia com os grampo de cerca, e num teve duvida: meteu o grampo no lugar da bala, esperou a onça chegar mais perto e...PAM! A cartucheira deu aquele coice, o cumpadre nem esperou pra ver e botou outro grampo, firmou a mira e de novo PAM! Quando a fumaça dismanchou no ar, lá tava a onça, urrando e esperneando. Tava com o rabo preso num tronco grosso de jacarandá. Os dois grampo acertaram a bicha pelo rabo e ela ficou pregada no tronco da árvore, miando que nem arma penada.

— Égua, sô. Essa é difícir de enguli, hein, cumpadre?

Fumo drumi. No outro dia, levantamo cedo e fumo verificá a rede. De noite tinha chuvido muito e o rio tinha subido mais ainda, mais a rede tava bem armada. Tinha uns oito ou dez pexinho inganchado, umas trairinha, coisa de pouca importância. Quando a gente subia pro rancho, ouvimo a zoeira das bandas de onde o Sinfronio tinha armado a arapuca. Corremo pra lá, e o que vimo?

Sinfronio tava que nem cabia em si de surpreso. O rio tinha subido e coberto o terreno onde ele tinha armado a arapuca. No que ele levantou a rifirida arapuca, dentro dela tava um trairão de mais de cinco quilo, preso na armadilha.

Pois oceis acredita que foi o maior peixe que conseguimo pegá naquela pescaria?

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Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 15 de janeiro de 2002.

CONTO # 138 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/04/2014
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