189 – AS VOLTAS QUE A VIDA DA...

E o tempo foi passando, e como passou depressa, ele agora com setenta e cinco anos de idade, ela com setenta, cinco décadas casados, ela se desgastou com o tempo, assim como tudo se desgasta com o passar das eras, inexplicavelmente ela teve complicações mentais que se agravava cada vez mais, ela foi se enfraquecendo, não fisicamente, mas mentalmente, e de uma hora pra outra começou a ficar esquecida, e esses esquecimentos paulatinamente foram tomando conta do seu dia a dia, das vezes esquecia a panela no fogão com o fogo acesso e saia tranquilamente pela vizinhança nas suas costumeiras visitas, quando o fumaceiro da comida queimando a chamava para a realidade, das vezes queimava as roupas quanto estava passando, e o pior era quando esquecia o ferro de passar roupas ligado por horas a fio, não mais se lembrava da data de aniversário do esposo, a dos filhos, esqueceu a data do seu casamento, lembrava o dia em que nasceu, mas em que ano? Ah! Isto ela esqueceu completamente, e pensar que tinha na ponta da língua todas essas datas, agora só um imenso e profundo vazio na sua alma estava afastando-a de tudo e de todos, só não se esquecia do seu esposo, o grande amor de sua vida, e assim foram avolumando os esquecimentos, e assim foram avolumando as contrariedades do esposo para com aquela situação!

A situação financeira do casal não permitia a contratação de uma empregada doméstica para aliviar aquela situação, viviam de minguadas aposentadorias que mal davam para pagar as contas, então ele contrariadamente passou a assisti-la em tudo o que ela fazia, vigiava as panelas no fogão, verificava constantemente se o ferro de passar roupas não estava ligado, passou a viver ao seu redor, acompanhando-a em todos os afazeres, e isto o aborrecia, o martirizava, por fim perdeu a paciência, passou a gritar com ela, começou a maltratá-la, logo logo se esqueceu das cinco décadas felizes do casamento, e na sua ideia foi crescendo e ramificando o propósito de dar um jeito naquela situação, dar um basta, custasse o que custasse, e para tanto começou a imaginá-la em um abrigo dos velhos, assim se desvencilharia de uma vez por todas daquele fardo!

Por fim, arrogante, esquecendo-se de toda ternura que sempre existiu entre eles, secamente perguntou:

- Estou pensando em interná-la no abrigo dos velhos, o que você acha? É bom pra você e é bom pra mim!

Ela ajuntou as mãos como que rezasse fervorosamente e disse:

- Se isto te fizer feliz, eu vou contente viver no albergue, se a minha ausência te deixar melhor, que me leve logo, não sou mais digna de viver ao seu lado, durante quase toda minha vida eu vivi para fazê-lo feliz, suportei todas as dificuldades de um lar empobrecido, mas eu suportava bem contente, porque estava fazendo o meu homem feliz, sei que hoje sou um ser imprestável, não mais consigo dar conta das minhas atribuições, e a maior das minhas atribuições era fazer você feliz, se nem para isto estou servindo, então a minha vida terminou, o sonho naufragou, agora sou eu que não quero mais viver nesta casa, me leve logo para o abrigo, aqui não é mais o meu lugar!

No outro dia bem cedinho, no velho fusquinha que possuíam, lá iam os dois rumo ao abrigo, e lá chegando e ela foi acomodada em um dos quartos comunitários, se juntou a outras idosas que por um motivo ou outro foram ali também abandonadas, ela não chorou, não implorou por piedade, se manteve calada, como que tivesse apenas mudando de uma casa para outra, e que nada mudara em sua vida, mas mudou...

Pela última vez se abraçaram, abraçaram tantas vezes como que não quisessem parar, como se aquilo os mantivesse unidos, mas por fim se separaram, e ele partiu...

Ele partiu jurando que a visitaria constantemente, que traria os docinhos que ela sempre gostou, que de vez em quanto traria aquele sorvete de ameixa que tanto adorava, que estava fazendo tudo aquilo com o coração partido, mas era a melhor maneira dela ser bem assistida tanto pelas enfermeiras quanto pelos médicos que regularmente visitavam o abrigo, que estava deixando-a naquela situação para o bem dela, para uma melhor arrumação na vida dela!

Mas era tudo mentira, balela, o que ele queria mesmo era se livrar daquela que o serviu por tanto tempo, sempre submissa, serviçal, que tudo fazia para vê-lo feliz...

Assim que saiu do abrigo dos velhos já havia esquecido completamente o juramento que fizera, mais parecia com um passarinho que se livra da prisão de uma gaiola, abriu as asas e voou, agora livre e desimpedido.

E assim se passaram breves meses para ele, longo meses para ela esquecida e abandonada no asilo, ele se sentiu remoçado, passou a cuidar mais do fusquinha, lavando-o e encerrando amiúde, desfilava pela cidade parecendo um mocinho na procura de amores, mas é nesta terra que se paga pelos nossos erros e pecados, foi quando numa noite teve um sonho terrível, um pesadelo!

Sonhara que tinha morrido, e sua alma tinha ido direto para o inferno onde padecia por grandes sofrimentos e tormentos, no desespero clamava por todos os anjos e santos sem que nenhum deles viesse em seu auxílio, se sentindo completamente perdido e desamparado, se lembrou finalmente da esposa e implorou pela sua ajuda, pela sua piedade, pediu perdão por tê-la abandonado em um asilo, milagrosamente os céus se abriram e ela desceu até o umbral, viera socorrê-lo, apesar de desprezada ela não o havia esquecido, ainda o amava com a mesma intensidade de outrora, segurando na sua mão, pois seus olhos da luz desprovidos, o conduziu para fora do inferno!

Ao se despertar daquele pesadelo, ainda a chamando pelo nome dela, arregalou os olhos, o dia já havia nascido, celeremente pulou da cama e se dirigiu ao abrigo dos velhos contristado em arrependimentos e lá chegando...

Adentrou ao quarto e a encontrou entristecida, calada, absorta, como que não mais vivesse neste mundo, com o coração partido ele a abraçou e entre lágrimas pediu perdão, ajoelhou aos seus pés e outras tantas vezes pediu perdão, e ela passando os dedos por entre os seus ralos cabelos, agora também chorando:

- Eu que estava morta, agora ressuscitei nem que seja por um breve momento, senti entre nós o mesmo amor de outrora! Senti meu coração bater celeremente como nos velhos tempos quando vivíamos um para o outro, me senti mocinha outra vez...

- Meu amor, me perdoa, arrume as suas coisas vamos voltar para casa, voltar para aquela casa de onde você nunca deveria ter saído, aquela casa não é a mesma sem você, tudo ficou vazio e silencioso...

- Meu querido, eu não posso mais voltar, você se esqueceu que eu estou muito esquecida, que não estou boa da cabeça, das vezes não consigo me lembrar do que estava fazendo, nem do que iria fazer, se eu voltar só vou te dar preocupações e cuidados, além de te deixar com muita raiva e contrariedades!

Ele completamente transtornado, olhos marejados de lágrimas, procurou a direção do abrigo comunicando que a levaria de volta, e de braços dados saíram para a rua, para o velho fusquinha, fusquinha que tinha envelhecido junto com eles, o carro das vezes demorava pegar na partida, das vezes dava uns trancos, das vezes misturava as marchas, mas era teimoso, sempre os levava ao destino!

Outro dia caminhando pela praça, vi um casal de velhinhos sentados em um banco, eram eles olhando para o alto das arvores e ele com toda paciência do mundo mostrava pra ela os passarinhos, outra vez os vi caminhando de braços dados, calmamente olhavam os peixes existentes no lago da praça, e ela com seus ternos olhos verdes olhava para o esposo placidamente enamorada...

Que Deus lhes dê longos anos de vida, o que machuca das vezes são as lições mais sublimes a serem aprendidas, felizes daqueles que se arrependem dos seus erros e os corrige, pede perdão pelas suas falhas e não mais volta a cometê-las...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 22/06/2014
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