O Senhor dos Sonhos

Naquela hora do entardecer, o senhor Ribeiro

tinha a forte impressão de que seu carro

apenas se afundava na noite nascente a cada

quilômetro vencido da estrada. Era a primeira vez,

em dois anos, que visitaria o filho. A idéia da viagem

o aborrecia tanto quanto o rádio que se interrompia

ou se enchia de chiados toda vez que uma curva

contornava algum morro. Se fosse possível, teria adiado

novamente a visita. Queria estar com o filho, é bem

verdade, mas não gostava de estar sendo enganado

desde o dia em que o garoto ingressara na Faculdadde

de Artes.

Em sua época de universidade, o próprio Ribeiro

sentira a forte vocação de ser um artista plástico. Por uns

tempos sua vida se moveu por este intenso desejo. A família

não possuía meios suficientes e, por fim, pareceu tolice, a ele

e aos seus, firmar os pés em qualquer carreira que não

apontasse um rumo claro para a vida. A decisão se mostrou

acertada, já que aos poucos construiu-se prático e rico, o

homem que planejara ser. Sem nunca abandonar o gosto

da juventude, as paredes de suas casas, cada vez mais amplas,

foram sendo tomadas por uma valiosa coleção de obras de

arte. Envolvido por este ambiente, cresceu o filho de Ribeiro.

O olhar vivo do moleque sempre voltado àquele pai ao seu

gosto refinada pela arte. Ribeiro tomou com satisfação e

naturalidade a decisão do filho em ingressar na Faculdade de

Artes. De pronto, resolveu bancar a aventura do filho, dando-lhe

a oportunidade que nunca tivera.

Agora sabia que o filho o enganava, utilizando a boa mesada

para não se preocupar com nenhuma arte senão a de bem viver.

Foi com tal sorte de pensamentos que Ribeiro trocou a noite da

estrada pela claridade falsa da cidade. O esboço de mapa que

havia recebido serviu para orientá-lo através das largas

avenidas até entrar numa rua estreita e achar o prédio simples

que onstentava na fachada o mesmo número indicado no

recorte de papel.

Subiu quatro lances de escadas, tocou a campanhia e viu a

porta se abrir. O filho surgiu , com um largo sorriso, para abraçá-lo.

- Entre papai! - exclamou.

As mãos de Ribeiro suavam. Ele examinou toda a extensão

da sala de móveis modestos, com uma estante repleta de livros e

paredes nuas. O filho o cobria de gentilezas.

- Paulo, onde estão os seus quadros?

- Mas é claro - respondeu com entusiasmo, sem perceber o

tom seco da pergunta do pai. - Sente-se um minuto.

Paulo sumiu pelo corredor e voltou trazendo uma, duas, três,

quase uma dezena de telas assinada com o nome de família.

Arrumou-as lado a lado, tentando superar a falta de espaço,

preparando a exposição para um exigente colecionador.

Ribeiro mal podia acredita naquilo. Cometera o maior dos enganos:

seu filho era um artista que transboradava talento. Com os olhos

vermelhos puxou-o para seu lado ; depois, cheio de satisfação,

passou a decifrar a pequena mostra. Cenas figurativas de interior,

cenas de um ateliê, compstas num estilo forte e próprio. As telas

estavam mergulhadas numa atmosfera cinza e em todas elas surgia

um mesmo rosto masculino, maduro, que em sua morena obscuridade

pareceu estranhamente peculiar a Ribeiro.

- Quem é esse homem que está nos quadros ?

- É alguém que inventei, um pintor que talvez habite o mundo

dos sonhos - disse.

A explicação vaga de Paulo não condizia com a riqueza de

detalhes e a aparente complexidade retratada tantas vezes; para o

orgulhoso senhor Ribeiro, ela soou satisfatória. Ribeiro estava em paz

com sua consciência e Paulo, sem se saber responsável pela alegria

do pai, teve em seu velho, pelas próximas horas uma ótima companhia.

Naquela noite, ao contrário do previsível, o sono de Ribeiro foi

agitado e desagradável. Em sonho, visitou um ateliê. Telas, pincéis, tintas

e solventes espalhados por todos os cantos. Um homem pintava sob

a fraca iluminação. Ribeiro se aproximou e logo reconheceu a figura dos

quadros de seu filho. Sem a proteção das sombras aquele rosto perdeu

seu inquietante mistério.

- Você está mais velho, seu rosto tem novas marcas, mas

finalmente eu o reconheço - disse Ribeiro.

- Nós dois estamos mais velhos - retrucou o outro.

- Porque você parece transtornado ? - disse Ribeiro com ironia.

- Vejo que produziu uma centena de bons quadros, exatamente

como pretendia.

- Minha tristeza não é por mim, é por você. Eu fiz o que deveria,

mas e quanto a você? Por mais que eu tenha indicado seu caminho, há anos

você me expulsou de seus sonhos e correu contra o destino. Agora exige de

Paulo o que você não realizou. Pintar era o seu destino.

Ribeiro acordou com uma sensação de amargor, graças à

imagem incômoda daquele rosto. Ainda entre o sonho e a vigília, ao

despertar, teve, pela primeira vez, a impressão de que o medo de visitar

Paulo era o medo de si, o medo de enfrentar um destino não cumprido.

"Apenas um sonho esquisito", repetiu mentalmente. E quando a face

morena já se desvanecia na memória, pensou: "Apenas um sonho inspirado

pela imaginação de meu filho, que absurdo me preocupar!" Mas ficava a

pergunta: qual dos dois, ele ou o filho, tinha sonhos próprios? E qual

vivia os sonhos do outro?

No café da manhã com Paulo, Ribeiro quis deixar o quanto antes

aquele apartamento e voltar para o abrigo de sua rotina.

- Não pense que já vai embora - sentenciou Paulo. - Você ainda

não conhece meu estúdio.

Havia mais quadros? mais retratos daquele homem e seu mundo

inexistente de sombras!

- Aluguei uma casa, onde passo as manhãs pintando. Minhas aulas

são à tarde. Faço questão de que conheça o local, afinal é o seu dinheiro

que o mantém. Em breve espero começar a vender meus quadros, e aí a

situação vai mudar.

Pai e filho caminharam pela rua ensolarada. O calor da manhã já

parecia sufocar. Chegaram a uma casa, modesta como o apartamento,

ainda que mais espaçosa. Uma colega do filho pintava na sala principal;

provavelmente outros artistas também usavam o espaço.

Paulo indicou seu "território" na casa e fi apontando suas telas,

fazendo pequenos comentários acerca de cada uma. A ansiedade de

receber a visita do pai passara; podia mostrar sua obra om confiança.

O mesmo talento visto nas telas escuras da noite anterior. Desta vez, os

olhos do pai refletiam quadros com cores vibrantes e temas variados,

libertos como o próprio artista. Vendo a surpresa de seu velho, Paulo

explicou que as telas de seu apartamento pertenciam a uma fase anterior,

superada, que correspondeu ao período logo posterior à vinda para a

faculdade. Na época, ainda não tinha uma visão clara do caminho

artístico a ser seguido.

Ribeiro enxugou a testa. A colega de seu filho lhe trouxe um

copo d'água. Os três sentaram-se para conversar; o peso e o calor

e a aflição do ar foram aos poucos se desfazendo. Mantiveram uma

conversa tranquila sobre arte e planos futuros. O entusiasmo dos dois

jovens trouxe boas recordações a Ribeiro.

Rodeado pelo colorido das obras do filho, o senhor Ribeiro

percebeu que em breve Paulo encontraria o sucesso. Mas seu

pensamento foi além: no campo da arte, Paulo já percorria terra que ele,

Ribeiro, jamais teria alcançado.

César Augustus Frc
Enviado por César Augustus Frc em 22/08/2014
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