Pescaria na cacimba

Era uma manhã ensolarada de um dia qualquer no final da década de 80. Provavelmente, um domingo.

Um horário bom pra se pescar traíra é na boquinha da noite, mas ela queria o peixe para o almoço!

Minha avó calçou seu chinelinho “Tyo-Tyo” 36, vestiu seu vestido estampado “da sorte”, cheirou, antes de partirmos, um rapé tirado de um frasquinho escondido em um cantinho da bolsa e, entre espirros, me chamou pra pescaria na cacimba da fazenda várzea, no norte de Minas:

- Aaaaaatchêêêêê! Rumbora Charles! Aaaaaatchêêêêê!

Adorava ver Vó Silu com seus passinhos ligeiros em meio à trilha do gado no pasto, com sua varona de bambu – exclusiva - sobre o ombro direito apertando mais o passo pela ansiedade de iniciar logo a tão amada pescaria de traíra... de preferência no plural: traíras... e de preferência ainda: traíras bitelonas...

Eu colocava um pé no arame farpado arochado e com as mãos puxava o fio de cima pra dar espaço pra ela passar. Ela tinha medo de vaca parida, mas não era uma simples vaca parida que iria impedí-la de chegar na cacimba: - Charles! Pega o estilingue e atira torrão no lombo da vaca! Eu atirava e vó gritava: - Ôa vaca! Sei lá o que “ôa vaca” significava no linguajar das vacas, mas a vaca corria e ia embora”...

À medida que nos aproximávamos da cacimba a gente obrigatoriamente teria que diminuir a fala e passar a sussurrar para não espantar os peixes... só nunca me ocorreu pra onde eles podiam ser espantados já que estavam numa cacimba tão pequena, cercada de terra para todos os lados.

Minha avó era cheia de rituais e supertições para pescar. Se a pescaria era boa ela guardava o vestido pra usar na próxima pescaria – para o peixe reconhecê-la pelo vestido e vir ter com ela... Se não pescava, aquele vestido era guardado até passar a energia negativa... Se ela pegava um cágado, você tinha que tirar ele e cuspir no anzol – pra não pegar mais cágados... Um benzedor da cidade tinha ensinado a ela esses rituais e ela cumpria à risca todos eles.

Chegamos e nos sentamos lado a lado à beira da cacimba. Silêncio absoluto quebrado apenas pelo bater da ponta da vara três vezes seguidas na água – pra traíra ser avisada onde ela tinha jogado o anzol e vir lá sem perder tempo para ser pescada...

Como eu disse, minha amada avó Silu usava uma varona exclusiva pra pescar traíra – nenhum neto nem ninguém poderia pescar com aquela vara. As demais eram guardadas em pé num canto da sala perto do telefone. A dela era detrás da porta do quarto dela onde ela a mantinha trancada com a chave guardada consigo.

Só que além da vara ser comprida, a linha tinha o dobro do tamanho pra chegar o mais longe possível na água e pegar os peixes maiores que com certeza precisariam de águas mais profundas para nadar. Mas a cacimba era pequena.

Mal ela jogou o anzol, foi puxada com tal fúria e repentino impacto que rolou para dentro da cacimba. Estava toda enlameada. A vara tinha se quebrado na ponta. Eu fiquei estatelado com o susto que levei. A voz nem saía para perguntar se ela estava bem, se não tinha se machucado. Ela aprontou uma gritaria, num desespero me pedindo para lhe estender a mão e lhe tirar de lá o mais rápido possível. Tirei e só foi o tempo de recuperar o chinelo “Tyo-Tyo” boiando na água parada, para ela sair correndo pelo pasto afora gritando pelo nome do meu pai que ficara lá na casa:

- Geraaaaldo! Geraaaaldo! Acooode!

Meu pai estava na varanda da casa, sentado num banco, fumando um “Trevo” cuidadosamente enrolado com seu canivete com cabo de osso – imitação de osso. Não se mexeu do lugar até que sua mãe lhe chegasse em cima esbaforida:

- Corre Geraldo! Pega a sua tarrafa e vem pegar um peixe enorme na cacimba!

- Enorme quanto, mãe?

- Me arrastou de cima do barranco e me jogou na lamba da cacimba!

- É! A senhora tá que é puro barro mesmo. Deve de ter escorregado né?

- Que escorregado que nada! Fui arrastada, de sopetão!

- Rs... Qual o quê, mãe? Naquela cacimba? Lá não tem peixe pra isso não!

- Tem sim, está aqui o Charles que não me deixa mentir, ele viu tudo...

- Cumé qui foi fi? Que que aconteceu?

- Ói pai, a gente se achegô, sentô e vó jogô o anzol na água. Nem bem se assentô o anzol fou puxado com tanta força que jogou ela lá dentro da cacimba.

- Num falei? Disse a minha avó, grata por tão valioso depoimento de sua testemunha ocular do fato.

- Ainda não acredito! Disse-nos meu pai soltando uma baforada para o ar, na maior tranquilidade que minha avó não estava preparada para aceitar:

- Pega logo a traia Geraldo e vamos agora lá na cacimba!

- Tá! Mas já digo que lá não tem peixe pra isso tudo!

- Tem!

- Intão tá! Se tem eu pego!

E lá foi minha avó com passos ainda mais ligeiros mostrando o caminho da cacimba – como se o pai não soubesse, e repetindo toda a história e me pedindo pra confirmar a toda hora e eu só dizia:

- Pois é!

Resumo da ópera: Meu pai tarrafeou a manhã inteira e só pegou alguns lambaris, umas duas ou três traíras, algumas lampreias e cágados... nada de peixe tão grande!

Voltamos pra casa tristes:

- Num falei que não tinha?

- Tinha! Você que não pescou direito!

- Eu virei a cacimba do avesso! Se tivesse eu tinha pegado...

- Ói aqui a vara quebrada! É a prova!

- Deve ter enganchado, a senhora puxou e quebrou a vara... daí escorregou e caiu.

- Não! De jeito nenhum! Eu fui puxada! Não foi Charles?

- Pois é!

O dia passou, a noite também. Amanheceu!

Minha avó foi fazer o café da manhã enquanto eu me aquecia, de cócoras, no calor e sobre o fogão à lenha. Era uma manhã fria e enevoada!

Pai chega à porta... sorrindo faceiro de uma maneira galhofeira, olhando para nós dois...

- Que foi Geraldo?

- Zé Boréu pegou seu peixe...

- Pegou?

- Pegou!

- Quando?

- Agora!

- E é grande?

- Ô! Enorme!

- E tá aonde?

- Com ele. Lá no curral! Ainda está com o anzol enganchado na boca e a ponta da vara garrada...

- Então cuida de terminar de passar o café que vou lá ver! E saiu correndo, comigo correndo atrás...

Chegando lá, nem se importou de atravessar ligeiro o mangueiro cheio de vacas paridas, indo direto ao ponto onde se encontrava o vaqueiro sentado num banquinho de uma perna só, atado à cintura.

- Nondé qui tá?

- Nondé qui tá o qué, dona Silú?

- Meu peixão! Que peixe é?

- Um peixe cavalo! A senhora pescou um dos cavalos! A senhora deve ter jogado o anzol e o cavalo devia estar bebendo a água do outro lado da cacimba... Ele puxou o anzol que lhe enganchou nos beiços e te derrubou na água... Olha, o anzol ainda está lá enganchado com a ponta da vara e tudo... venha ver!

- Geraldo me paga!

Voltou pra cozinha bufando, fazendo com que meu pai não se atrevesse a fazer-lhe qualquer comentário jocoso...

Rir ele não riu, mas aquele sorrisinho não lhe saia do canto da boca depois de cada sorvida no café fresquinho... Eu que o conhecia bem demais, sabia... por fora ele não ria, mas, por dentro, ele gargalhava!

Charles Lucevan Rodrigues
Enviado por Charles Lucevan Rodrigues em 06/09/2014
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