SERRA VELHO

Seu Marinho era um cabra velho e chato que morava no casarão em frente à praça.

Aposentado e já bastante avançado na idade, vivia implicando com deus e o mundo por não ter o que fazer.

Da varanda larga, bem mais alta do que a praça ele ficava observando as pessoas e quando os meninotes estavam jogando futebol e que a bola caía em seu terreno, tendo ou não causado algum estrago ele mandava Zé, um negrinho que vivia na casa, apanhar a bola para ele cortar.

Era com prazer que ele, depois de cortar a bola toda, jogava as tiras na rua ou na praça.

Com a proximidade da semana santa, alguém lembrou de serrar seu Marinho.

Rapidamente apareceram os candidatos para fazer o testamento, construir o Judas e arranjar os instrumentos para a farra.

Os vizinhos foram consultados para saber as coisas erradas ou não sobre a vida dele e dos parentes, principalmente da família que vivia no casarão.

Alguém, porque nesses casos o autor nunca aparece nem é denunciado pelos comparsas, fez o Judas com quase dois metros de altura que seria acorrentado no portão do velho.

Na noite da quarta para a madrugada da quinta feira santa os molecotes se juntaram aos mais velhos e foram para a praça na frente da casa do seu Marinho.

Ficou acertado que parte deles seriam “as carpideiras” outro levaria um serrote grande.

Arranjaram uma lata de querosene e um caixote, daqueles de sabão, para serem serrados enquanto o testamento estivesse sendo lido.

Essa brincadeira que os portugueses trouxeram para o Brasil, geralmente tinha consequências desastrosas.

Além dos velhos que morriam do coração ou de quaisquer outras complicações por conta da ira incontida, os serradores eram recebidos a dente de cachorro, tiros de espingarda soca-soca ou armamento de maior poder de fogo disparadas por parentes, empregados ou mesmo os próprios velhos alvos da brincadeira.

Um dos gaiatos com o papel do testamento que seria pregado no peito do Judas chegou mais perto da varanda da casa e gritou a plenos pulmões:

- Acorda para ouvir teu testamento, prá não morrer como um jumento.

As carpideiras começaram os gritos de desmaio e os choros em voz alta.

O serrador passou o serrote na lata porque fazia mais zoada que o caixote.

O testamenteiro continuou:

- Deixo prá Zé, meu neto bastardo, filho de minha filha Alzirinha com o negão do açougue, a minha bengala velha;

Choros e gritos das carpideiras e som agudo do serrote na lata.

- Para Alzirinha, a minha filha rapariga, deixo o penico de louça que minha mãe mijava dentro toda noite;

Mais choros e gritos...

- Para o cachaceiro do meu filho Manoel, deixo o meu pijama listrado com mancha de mijo na perna esquerda e o buraco no fundo da calça para sair a catinga de peido;

Outra vez o serrote na lata acompanhado pelo som do caixote serrado por outro salafrário fazendo contraponto com as carpideiras...

- Deixo para Alzira, minha mulher velha e desdentada, o par de chifres que sempre botei nela com a mulher vagabunda do farmacêutico.

Mais choros...

- Para minha irmã Raimun...

A porta da frente da casa se abriu e foram acesas as lâmpadas da varanda.

Seu Marinho seguido de toda a família dele saiu pela porta da frente com uma bandeja cheia de copos na mão.

Os demais traziam outras bandejas com bolos, pães, galinha assada, porco guisado, linguiças, garrafas de refrigerante e de bebidas destiladas e uma grade com garrafas de cerveja gelada que foram colocados na mesa meio escondida na obscuridade do canto da varanda.

Os brincantes entraram para comemorar e a brincadeira perdeu a razão de ser.

O Judas, sem o testamento pregado no peito, foi pendurado numa das árvores da praça para ser malhado no sábado de aleluia.

Na semana seguinte, pouco antes do almoço, seu Marinho fez tiras com outra bola novinha caída em seu terreno...