O anjo Malaquias

O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos,

com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de

aparentar, por esporte.

Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele.

Chamava-se Malaquias – tão pequenino e reconchudo, pelado,

a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da

primeira infância...

O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o

Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre.

Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito...

saiu voando janela em fora...

Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe

apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima,

atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a

Mãe de Deus lhe vale!

Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados

das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre

elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.

E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos

filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no

entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!

E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho

em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como

cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase...

E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam,

no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!

E quantas vezes um de nós, ao levantar o copo ao lábio,

interrompe o gesto e empalidece... – O Anjo! O Anjo Malaquias! –

... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos

que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um

pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...

(Melhores poemas Mario Quintana, São Paulo: Global, 2003, pp. 87-88)

Mario Quintana
Enviado por Sandra Ferrari Radich em 11/03/2015
Reeditado em 11/03/2015
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