O Ladrão

Nem eu sabia o que havia acontecido. O que eu acostumei ver sempre em filmes de guerra ou de terror, estava ali, estava em minha frente. Estava em mim. Sobrevivia em mim um desejo de dúvida: É real? Tudo que eu estou sentindo é real? Não era um pesadelo da qual eu estava preso sem chance de encontrar as chaves das portas para a saída? Para a luz?

Eu não conseguia falar. Me mexer. Me tocar. Tudo parecia cena de filme. Com uma condição: eu era um dos milhares de personagens. Vi crianças, mulheres, idosos sendo espancados, enforcados. Mulheres sendo estupradas. Tantas mães gritando por serem arrancadas de seus filhos.

Alguma coisa havia me assaltado, ou de tudo que sempre achei que era ficção, expulsava toda a minha ideia de realidade ou sanidade.

Eu não conseguia mover os lábios. Fui possuído por uma paralisia que me congelou por um momento. Não ouvia ninguém ao meu redor, à minha frente, atrás ou ao lado. A dor bloqueou todos os meus sentidos.

Eu não queria acreditar. Não queria sentir. Mas todo o horror estava habitando em mim. Sem licença. Simplesmente me envenenando, corroendo-me as veias e imobilizando os meus pensamentos.

Percebia que ainda havia barulho, choro, sangue por todos os lados. A morte dançava livremente, alegre e contente. A barbárie se mostrou naturalmente humana.

Esvaia-se de mim sonhos, lembranças de uma tarde de domingo em família, o sonho de comprar um carro novo, o sonho de conhecer Paris. Tudo caía lentamente sobre minha consciência como pedaços de papeis picotados por uma força extremamente violenta, que me arrancava de mim mesmo. Eu era o mesmo?

Eu estava sendo expulso de mim sem algum tipo de aviso prévio. Ainda estava confuso. Uma parte daquilo que restara de mim não acreditava nada daquilo que via, sentia e vivenciava. Outra parte, intensa e forte, negava tudo, bloqueando os sons das armas disparando, os choros das crianças sendo espancadas até a morte. Todo aquele caos me levou todos os desejos e projetos para algum futuro. Um futuro que eu achei que chegaria. Se alguém me dissesse que eu havia enlouquecido eu acreditaria, sem dúvida.

Tudo era impossível de acreditar. Tudo era cruel e insano. Vizinhos, colegas de trabalho, pessoas comuns se matando por ódio. Isso é o bastante? Quanto vale uma vida?

Quem sabe o tamanho do ódio de cada um, talvez.

Eu não saberia distinguir ficção da realidade naquele momento. Eu estava consciente?

Eu não via minhas filhas, minha esposa, meu cachorro. Só gritos, sangue, tiros, histeria e pânico. Pânico. Vi uma face do ser humano que sempre acreditei ser a face de personagens das histórias infantis que nos contam quando crianças para nos domesticar. O lobo estava ali. Comendo todos.

A única reação que tive foi o silêncio. Talvez todas aquelas cenas tenham invadindo a minha inconsciência, onde eu já não poderia mais escolher qualquer coisa a fazer ou controlar meus impulsos. Eu acho que me calei. Talvez eu tenha emitido algum som. Mas eu não consegui ouvir. Eu não sei.

De repente me vi pequenino. Como um garotinho que vai para cama dormir e não consegue, pois há muito barulho nas árvores e eu não consigo dormir. Pode ser um monstro atrás das árvores. Só não sabia que o rosto do monstro era tão humano.

Tudo que eu acabara de ouvir, sentir, ver, tocar tenha me provocado por instinto de sobrevivência um desejo inconsciente de fechar a janela da noite assombrosa e permanecer até tudo acabar. A manhã sempre chega, ouvia meu pai dizer. Mas meu pai não estava lá. Ele foi levado até a câmara de gás. Então eu me escondi de todos. Fugi dos barulhos e esperei o sol nascer. Mas a cor do sol nasceu vermelho, como a bandeira vermelha rasgada de sangue de gente inocente da qual que eu não parava de fitar. Algo em mim não queria aceitar. Não queria estar ali, não queria estar vivo. Eu estava vivo?

Eu só queria que tudo acabasse logo. Eu queria chorar. Eu só queria ir embora pra casa e abraçar minhas filhas, dar um beijo na minha esposa e jantar. Eu só queria a minha vida de volta. Mas me levaram tudo, sem me deixar pensar. O ladrão que me levou de mim tudo que eu era até ali só me deixou rastros nas minhas penosas e dolorosas lembranças. O assalto estava sendo anunciado todos os dias. Mas ninguém notava. Ninguém dava importância. Afinal, o que é um ódio. Só um ódio, nada mais. Todo mundo sente isso de vez em quando. Até eu. Mas naquele dia o ódio havia unido milhares. E milhares morrerem vítimas de ódio. Eu não sei se sobrevivi ou se a minha dor sobreviveu. Só sei que quando vejo alguém sentindo ódio, tenho medo e me angustio. Fujo dali e dou meia volta.

Eu fui esvaziado, soterrado com os meus sonhos, filhas, esposa, cachorro e um futuro. Mais cinco milhões e novecentas e noventa e nove mil também foram esvaziados de si mesmos. Eu acho que me perdi por aquelas trilhas frias que levavam todos nós à morte. Eu acho que me despiram de tudo que acreditei um dia que era bom, justo, honesto, digno.

Só me restaram lembranças. Só lembranças.