O cego

Pacífico, era um senhor de mais ou menos 52 anos. Gordo, cabelos ralos, sempre sorrindo apesar de ser cego.

Não podendo trabalhar, divido ao problema visual, vendia bilhetes de Loteria Federal no calçadão de Taubaté.

Todos os dias, no mesmo horário, por volta das 9 da manhã, lá vinha ele tateando com a sua bengala o chão de ladrilhos mal assentados, trazendo em uma das mãos uma cadeira de abrir e fechar, uma mesa pequena do mesmo estilo, e a tiracolo uma bolsa de couro rústico onde guardava os bilhetes a serem vendidos.

Não sei dizer se algum dia ele vendeu a Sorte grande para algum transeunte, mas a história que vou contar é verdadeira, e ouvi de sua própria boca.

Pacífico ficava ali sentado desde as 9 até as 17 horas, todos os dias, fazendo chuva ou fazendo Sol.

Não tinha como ir para casa para se alimentar, pois morava em um bairro distante, e isso o atrapalharia em suas vendas.

Fez amizade com uma menina, que vendi panos de pratos há alguns metros de sua pequena banca. O nome desta menina era Clarice.

Eles se davam muito bem. A menina gostava de auxiliar o velho em suas vendas, quando por algum motivo percebia que alguém queria ludibriá-lo, lá estava ela do seu lado fiscalizando tudo para que o amigo não sofresse nenhum prejuízo.

O almoço de Pacífico era algo pontualmente serviço pela menina as 12 h, um marmitex que ela ia buscar na cantina do Elias, há alguns quarteirões adiante. O cego fazia questão de dividir seu almoço com a delicada Clarice.

Um sabia da vida do outro nos menores detalhes, mas este ponto não vem ao caso neste momento.

Havia entre eles uma amizade, uma paternidade, uma afinidade de pai e filha.

As vezes mesmo doente, Pacífico ia trabalhar, nem tanto pela venda dos bilhetes, mas sim para ouvir aquela voz meiga, doce, que o fazia feliz diariamente.

No mesmo calçadão, havia uma agencia bancária. O nome do banco não vem ao caso. Uma agencia agitada, extremamente movimentada pelos clientes e os comerciantes que circundavam aquele órgão bancário. Todo mundo sabia que ali corria muito dinheiro, dinheiro que um dia chamou a atenção de dois assaltantes.

Eles entraram na agencia como se fossem clientes. Anunciaram o assalto e começaram a catança. Um vigiava a porta enquanto o outro, recolhia tudo o que podia.

Mal sabiam eles que a polícia tinha sido avisada do roubo assim que eles iniciaram a movimentação dentro do estabelecimento bancário. Um dos clientes era policial, e estava ali para receber um cheque, reconheceu o meliante. Adentrou ao banheiro e deu o alerta policial.

Em poucos minutos o prédio estava cercado.

Minutos antes, Clarice teve uma conversa com Pacífico.

Ela tinha o costume de chamá-lo pelo apelido.

--- Pá... você precisa que eu faça algum serviço, se precisar é só pedir, basta ficar olhando os meus panos de pratos.

Pacífico esboçou um enorme sorriso. Como ele poderia olhar, se era Cego.

Foi então que a menina percebeu o seu descuido.

--- Perdão Pá, mas tem horas que eu esqueço que você não enxerga.

O velho levou sua mão direita até os longos cabelos negros encaracolados da menina, os acariciou como um bom pai o faria.

--- não se preocupe Clarice, somos amigos, e eu sei que as vezes esquecemos da realidade das vida. Preciso fazer um depósito em minha conta. Será que poderia fazer esse favor.

--- claro... De-me o dinheiro, o número da conta, é vapt e vupt.

Pacífico separava o dinheiro de uma maneira que até hoje nós os que enxergamos não tempos a mesma capacidade. Pelo tato, ele sabia o valor de cada nota. Fazia pequenos maços e dizia o valor certo que tinha para o depósito. Colocava em um saco de papel destes de padaria e pedia para a menina ir efetuar o depósito. Foi o que aconteceu naquele dia.

As sirenes começaram a tocar. O alarme do banco disparou. Correria. O comércio abaixou as portas. Na escuridão de seus olhos Pacífico logo percebeu o que estava acontecendo. Não tinha como sair de onde estava.

Percebeu alguns tiros. Depois um silêncio e logo em seguida uma correria.

Ouviu a voz de alguém gritando.

--- solte a menina, e prometemos que você não sofrerá nenhuma violência. - parecia uma voz de policial, resoluta, forte, sem medo.

Pacífico ficou quieto sentando entre a sua banca e a pequena banca de panos de pratos de Clarice.

Percebeu a respiração ofegante do criminoso se aproximando. Ao mesmo tempo que o soluço meigo de Clarice, com certeza ele a tinha feito refém.

Não ficou nervoso. Não ficou agitado. Continuou sentado, quieto em sua cadeira de abrir e fechar. O seu bastão que o conduzia pelas ruas de Taubaté estava do seu lado.

--- Você não tem por onde fugir. A rua esta cercada. Seu companheiro esta morto. Solte a menina e te daremos garantia de vida. - gritou o policial pelo megafone.

O assaltante continuava apertando a menina contra o seu corpo, usando-a como escudo, com a arma apontada para a cabeça de Clarice.

Mesmo sem o dom da visão, Pacífico parecia perceber tudo o que estava acontecendo. Continuava quieto, sentado em sua cadeira. Percebeu que o bandido se aproximava, trazendo a menina como escudo.

Sentia o cheiro. Sentia raiva. Sentia a respiração. Sentia ódio, mas não sentia medo. Levantou-se da cadeira e pôs se em pé. Não estava de óculos. O seus olhos eram brancos, não reluziam, não brilhavam.

--- fique quieto ai seu cego de uma merda, para mim, matar um ou dois é a mesma coisa.

Ouviu se o chorinho sofrido de uma criança.

--- vamos.... se entregue, solte a menina. Não queremos que morra mais ninguém.

gritou o policial.

O assaltante não deu a mínima para o cego. Cometeu um grande erro, o maior erro de sua vida.

O golpe foi tão violento que um pedaço de massa cefálica espirou ao chão.

O corpo do criminoso caiu inerte, já sem vida, ainda com a menina presa em seus braços.

Pacífico mais do que depressa, afastou aquele corpo ensanguentado de cima da menina, e a abraçou afetuosamente.

Os policiais que tinham visto a cena a distância não conseguiam entender como um cego poderia ter tido uma precisão cirúrgica na agressão. Como ele tinha percebido a distancia, a altura, a posição do assaltante, de tal maneira que a menina não fosse atingida.

Tenente Máximo foi o primeiro a se aproximar. Pegou a arma da mão do bandido.

Clarice estava abraçada ao seu herói.

--- diga-me como o senhor teve tanta certeza de que iria atingir este maldito assassino. - perguntou o policial, cobrindo o corpo com um plástico preto.

Pacífico, continuou acariciando os cabelos da menina. Respondeu feliz por ter salvado o seu Anjo, mas triste por ter matado um homem.

--- todas as pessoas tem uma aura. Aquelas de coração puro, que sentem o amor pelo próximo emitem raios de luz por todo o corpo. Este é o caso de Clarice. As pessoas ruins, sem escrúpulos, que só pensam na ganância, na maldade, apresentam um halo escuro envolta de todo o corpo. Sou cego. Não vejo o corpo, mas eu vejo a alma. Portanto, vi este ser humano perfeitamente, apressionando um ser divino como Clarice, não me arrependo do que fiz, mas não posso dizer que tenho orgulho do meu feito.

Assim dizendo, Pacífico segurou Clarice pela mão. Recolheram seus pertences e se foram.

Agora cada um tomava o seu destino, amanhã, um novo dia, tudo voltaria a rotina, como se nada tivesse acontecido.

Ton Bralca
Enviado por Ton Bralca em 05/06/2015
Código do texto: T5267056
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