SIRIS DO PORTO DE MARIA ANGU

Enquanto esperava ser atendido na mercearia, eu observava meninos jogando bola na alameda do canal. Um chute mais forte e a bola extravia-se rio abaixo perdendo-se na correnteza. Logo um deles vem correndo com um grande puçá improvisado na ponta de um bambu para resgatar o brinquedo...

Cena prosaica na modorrenta tarde suburbana, que me levou a despencar também pelas corredeiras das lembranças até encontrar, num escaninho qualquer do passado, há séculos, a figura inesquecível de meu pai. Ele também improvisava puçás de barbante para uma de nossas diversões preferidas: capturar siris no porto de Maria Angu.

No dia anterior à pescaria, quando papai chegava e as crianças corriam a abraçá-lo, já podíamos prever o passeio, pois ele vinha sobraçando um embrulho diferente que, pela maciez e odor característico, denunciava o conteúdo: um mal cheiroso pedaço de bofe! ("Lá vem o vosso pai outra vez com esta porcaria, para inventar moda!", dizia mamãe, contrariada, mesclando seu castiço português tramontano com legítima gíria carioca.)

Indiferente a qualquer comentário, rodeado pela filharada, meu pai dava início aos preparativos para a pescaria. Cortava varas do mato nos fundos da casa às quais juntava um pedaço de barbante e um gancho na ponta à guisa de anzol. O puçá e outros equipamentos, todos fabricados por ele, ficavam guardados no barracão.

No dia seguinte, escuro ainda, saíamos a pé, a princípio sonolentos mas logo saltitantes com a expectativa do mar, que azulava nossas idéias. Sobe morro, desce morro, linha do bonde, travessia, linha do trem, cancela, blém!, blém!, blém!, todos felizes a caminho do porto de Maria Angu. Rua Angélica Mota, Cinco Bocas, IAPC, Pirangi, Variante – a criançada à frente, papai na retaguarda carregando uma velha bolsa de lona cheia de apetrechos e, de quebra, a indefectível bóia de câmara de ar de automóvel. Carga volumosa, mas que em nenhum momento abalava o humor de papai, que cantarolava ao ritmo de seus passinhos gingados:

– Praia de Maria Angu, fedorenta pra chuchu!

Naquele tempo havia calhambeques que faziam lotação ligando a estação de Pedro Ernesto à praia mas papai jamais utilizava esta condução, preferia caminhar. Lembro-me que minhas perninhas infantis já cansadas à altura da estação do trem, menos da metade do percurso, faziam-me invejar as pessoas que passavam nos esquisitos calhambeques. Eles representavam para mim, naquele momento, um luxo supremo que o dinheiro podia comprar. Só mais tarde pude entender que ir a pé não era apenas uma contingência da nossa pobreza. Era também uma opção do grande andarilho que papai sempre fora. Além disso, aquele caminhar prolongava o tempo de convivência com os filhos na viagem e ele podia preparar-nos inúmeras brincadeiras pelo caminho.

No manguezal vizinho ao porto, divertíamos a catar pequenos guaiamus, enquanto papai adentrava o mar para fincar as varas com nacos de bofe dependurados. Depois, divertia-se boiando um pouco para atender aos insistentes pedidos da filharada.

Era um deleite ver papai flutuando leve como uma folha de cortiça! Não podíamos compreender aquele poder tão estranho que ele tinha de deitar-se sobre a água como se estivesse numa superfície sólida, mantendo à tona aquele corpanzil gordo, enquanto nós, levianinhos, afundávamos como chumbo. A silhueta vista da terra era um barrigão enorme flutuando, flutuando, enquanto todos nós corríamos para ele e fazíamos força para desequilibrá-lo e afundá-lo. E ele imóvel, olhos cerrados, deitado tranqüilamente sobre a água. De repente, soltava um esguicho de baleia e mergulhava...

Mais tarde, ele voltava à água e, com a nossa ajuda, ia recolhendo bem devagarinho os siris atracados aos pedaços de bofe e os depositava na bolsa de lona. Já então o sol começava a aquecer forte e tínhamos que iniciar o retorno.

Na caminho de volta, no bar da esquina de altos balcões de mármore antigo, tomava uma xícara de café‚ fumegante, de um só gole. Eu, admirador de tudo que ele fazia, algumas vezes, por imitá-lo, cheguei a voltar para casa com o céu da boca escaldado e milhões de bolinhas na ponta da língua.

Se o caminho de ida era cansativo para nossos passinhos de criança, o cansaço da volta parecia duplicar. Mas papai, atento às nossas reações, inventava truques para amenizar a caminhada. Algumas vezes contava anedotas: “Praça Quinze. Seu Joaquim está apreciando o mar na murada da estação das barcas. Atraca uma lancha. Salta um passageiro afobado e corre em sua direção gritando: "Seu Manuel, sua casa em Niterói está pegando fogo! Sua mulher e seu filho estão correndo perigo! Corre lá !" O português, assustadíssimo, não titubeia: entra aflito na estação e pega a primeira barca, que já deixava o cais. No meio da baía, já mais calmo, começa a refletir: “Ora iessa! Não sou Manuel , não sou casado, não tenho filhos, que diabos é que eu bou fazeire em Niterói?”

Outras vezes papai abandonava sua posição predileta de caminhar à nossa retaguarda, passava rapidamente à frente e, mais adiante, abaixava-se para "achar" no chão uma moeda (que ele mesmo havia jogado de trás, por cima de nossas cabeças, sem que percebêssemos). Naturalmente esquecíamos o cansaço e nos púnhamos a perscrutar atentamente o chão para ver se também achávamos algum. Eu ficava impressionado com a incrível sorte de meu pai para achar dinheiro na rua todas as vezes que saíamos.

De volta a casa ainda cedo na manhã – era a hora em que os vizinhos estavam começando a sair para a praia – podíamos finalmente descansar da caminhada. Menos meu pai, que reunia restos de entusiasmo para assumir ao fogão a operação "cozinha-siri", sob novos e veementes protestos de mamãe pelo caos em que logo se transformaria a cozinha.

= FIM =

Renato Alves
Enviado por Renato Alves em 07/08/2015
Reeditado em 07/08/2015
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