Chuteira de couro, com travas de couro repregadas...

No quarto ano escolar, com 10 anos de idade, ele viu seu primeiro jogo de futebol.

Sua classe foi assistir uma partida de futebol de salão, no Educandário ( uma instituição para criança de zero a dezoito anos) para crianças de situação de risco ou crianças órfãs, assistidas pelo governo. Hoje não existe mais! Que pena! Deles saíram muitos cidadãos, inclusive um dos jogadores que estudava em sua classe, o Nilson, "craque de bola".

Foi aí que começou seu sonho, ser jogador de futebol, todo tempo possível brincava no recreio com Nilson, aprendendo a jogar bola e conhecer esse esporte que seria tudo em sua vida.

Respirava bola, toda recreação com futebol ele estava presente, assimilando e gostando cada vez mais, já em sua casa praticava com bola de meia, com laranja ou qualquer coisa que fosse redonda. Ganhou uma bola de plástico de seu tio, mas não durou muito, pois a bola furou nos espinhos do mato, mas mesmo assim, a bola furada ficava pequena e dura, mas era melhor que laranja.

Sempre escondido, depois dos serviços de capinar os matos da chácara, cuidar do pomar, das hortas e das galinhas, fazia tudo rápido para sobrar tempo para jogar bola com seus primos da mesma idade, numa clareira nos fundos da chácara. Viva machucado principalmente o dedão do pé, sempre descalço e em terreno irregular, era normal cortar o pé em caco de vidro, pisar em espinhos, e principalmente omitir estar machucado para não apanhar da mãe.

Na escola ele leu um aviso: " A escola faria uma seleção de jogadores, do período da tarde, para jogar no estádio municipal, no feriado de aniversário da cidade".

Era o que ele sonhava: "jogar num campo de futebol de verdade", com chuteira e uniforme.

Faltava a chuteira, mas o mais importante seria a autorização dos pais, para poder participar do evento. Ele acreditava por ser uma seleção, um jogo no feriado da cidade, seus pais iriam assisti-lo jogar e teria aprovação... uma mistura de ansiedade e euforia tomava conta dele! O negocio era aguardar a lista.

Depois de uma semana saiu à lista, e ele estava lá, representando sua sala junto com Nilson e mais alguns colegas. Chegando em casa encontrou sua madrinha conversando com sua mãe, aproveitando deu a notícia de sua convocação e entregou a autorização, para sua mãe assinar, permitindo-o a jogar no sábado próximo à tarde no estádio municipal, contando a sua madrinha, que só faltava a chuteira, pois o uniforme completo a escola fornecia. Sua madrinha sorrindo, abraçou e cochichou em seu ouvido que a chuteira ela daria de presente, ele agradeceu muito, e como sempre sua mãe não deu muita atenção, dizendo que depois conversava.

No dia seguinte, saindo da escola, ele viu sua madrinha no portão com um embrulho, e conseguiu; ganhou sua primeira chuteira, novinha cheirando a couro, um par de chuteiras de couro marrom, com travas de couro repregadas com uma lapela grande e um cadarço preto.

Ele nem acreditava, dormia com a chuteira em sua cama, agora só faltava a permissão dos pais.

Passaram-se três dias e os pais nada falavam a respeito, a vida era normal, rotineira para o garoto, levantar cedo, comprar pães, trabalhar na chácara, ir á escola, voltar para a casa e seus pais nada falavam.

Até que chegou o sábado, o dia e a hora de ir para o vento, o jogo tão esperado. Ele viu seus pais trocados de roupa prontos para saírem, também rapidinho trocou de roupa, colocou as chuteiras em uma sacola, e perguntou aos pais se iam leva-lo ao jogo. O garoto escutou o que jamais queria escutar, e seus pais riam, mas quem falou foi sua mãe.

- Nada de futebol, temos outros compromissos, troque de roupa e vá limpar os canteiros e plantar as sementes de rabanetes. Vamos sair e, quando voltar quero ver tudo pronto.

Ele trocou de roupa, colocou shorts, camiseta e ao invés de ficar descalço, colocou as chuteiras, amarrou com carinho. Pegou a enxada colocou no ombro, e quando saía para o quintal deu uma olhada para trás e viu seu pai com a mão no ombro de sua mãe, e os dois rindo.

Guardou para si aquela imagem e foi trabalhar, com dez anos teve seu primeiro sonho não realizado. Nunca usou as chuteiras de couro com travas de couro repregadas, que ganhou de sua madrinha em um campo de futebol, usou na horta e na chácara para carpir e quando já não servia mais em seus pés, enterrou-as ao lado dos canteiros de rabanetes...

"Texto do meu livro "Onde estão as borboletas?" essa obra foi produzida para a Bienal deste ano em São José dos Campos SP, cancelada pelo governo".

Novaes Viva Mocidade
Enviado por Novaes Viva Mocidade em 25/04/2016
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