Filatelia

Dessa vez o inverno tinha vindo pra ficar, trazendo na garupa uma chuvinha enjoada que tinha transformado a estrada num atoleiro. Tudo era lama e a mãe de Nenel se equilibrava numa tábua para certificar-se de que o lotação já apontava lá na curva do Canto do Rio.

- Anda, menino, que Daniel hoje está com a macaca! – apressava seu magrelinho enquanto se espantava com a velocidade com que o motorista conduzia o carro que levava a criançada para o grupo escolar. Já estava na altura da igreja.

Paletó de casimira sobre a blusa do uniforme, contrapasso às costas, cabelo boi-lambeu, lá ia Nenel para o último dia de aula do ano, diante do quadro-negro de Dona Lelete. O mundo era tão grande, com tanta bandeira, tanta história, tanta novidade, que fazia acender no peito da gurizada muita expectativa por conhecer lugares além da Serra do Itaoca, só avistada quando os meninos subiam nos telhados de suas casas. A imensa planície, com seus canaviais, era o mundo possível: além, devia ser como aquele conceito de planeta-prato, com seus navios caindo no abismo se navegassem em direção ao fim do mundo. Aliás, num dos poucos selos que se juntava à sua coleção, havia um desenho que ilustrava isso. Na realidade, naqueles dias era difícil imaginar outras paragens sem chuva, goteira na sala, lama na porta, galinhas e patos encolhidos nos alpendres, crianças em alarido na cozinha, xarope de mamão-macho e tristeza por não poder jogar búrica na entrada da Rua de Seu Inacinho, que agora tinha virado um corgo.

- Quer ficar constipado? Sossegue dentro de casa e vá fazer o dever.

Nem adiantava aguardar com ansiedade o final de semana para pegar carona no trole da usina que realizava viagens regulares até a Fazenda Bangazal. Era muito prazeroso deixar pra trás as casas, as cercas, os pontilhões. Era a liberdade sobre trilhos. Sentia-se como a borboleta azul de um dos selos que tinha. Na plataforma, junto com os dois operários que manipulavam a maxambomba, famílias inteiras se acomodavam entre suas compras e iam botando a vida em dia. Qual nada! Com o frio e com a chuva que caía, o jeito era jogar dominó de cartas, escopa de quinze, pega-varetas e víspora. Que coisa mais sem graça o tal de roubar-montinho... Eita joguinho sem-sal! Mas era melhor do que ser obrigado a aturar a estação de rádio que os pais ouviam. Eram notícias só pra eles, coisas sobre Jânio Quadros e sua vassourinha, Marechal Teixeira Lott, um tal de plebiscito...Professora, o que é isso? Nesses tempos o remate do dia vinha em forma de cobertorzinho de flanela.

- Mãe, vem jogar o lençol e o pelego.

Havia um dom invejável em Dona Dita ao cobrir o filho. Ninguém conseguia estender o lençol com tanta abertura e de uma só vez. Momento único entre o baixar do tecido e seu deslizar sobre o corpinho do menino: uma comunicação silenciosa que garantia que tudo à volta marchava bem, mesmo que chovessem canivetes, mesmo que o tigre de Bengala daquele selo, que Dona Lelete lhe dera, aparecesse na sua frente. Era o início de um ritual que se concluía com sonhos, com achados de tesouros, baús repletos de figurinhas carimbadas de Ademir da Guia, de selos os mais lindos do mundo.

Na escuridão do quarto, quando em noites de lua, as sombras das bananeiras apareciam invertidas nas paredes, passando pelas frestas entre as telhas e a primeira fileira de tijolos, já que a casa dos Azeredos não possuía forro.

Nenel, encolhido sob o cortinado contra mosquitos, não sabia o que era pior: as formas fantasmagóricas à sua volta ou o breu total das noites de inverno, quando o encanto do baixar lençóis se dissipava e acordava gritando pela mãe, que dormia no quarto ao lado. Nos pesadelos, vivia cada situação contada pelo irmão, que quase sempre ia de bicicleta a Bangazal, na época em que namorava por aquelas bandas. Havia uma figueira mal-assombrada na curva da estrada, com musgos descendo até o chão, que abrigava lobisomens, boitatás e mulas-sem-cabeça. Seu irmão passava por ali como um raio, com o coração saindo pela boca. Fazer o que? Era o preço que tinha que pagar por pretender moça bonita. Quem é bom mora longe...

O fim do ano chegou e lá foi Nenel conhecer a cidade, com seus bondes e sua grandeza. Meu Deus, que vida tão arrumada! Campainhas nas portas, jardineiros, semáforos nas esquinas. Pras bandas do Liceu de Humanidades tudo parecia como nas folhinhas da farmácia de Seu Zinho: era Paris, era a Grécia, era Roma com seus templos, como naquele selo da carta da Tia Lurdes. Um forte cheiro de plantas saltava os muros das casas arborizadas e chegava aos transeuntes nas calçadas. Um cheiro que em nada lembrava o vinhoto-nosso-de-cada-dia e nem o roseiral amarelo de D. Conceição.

Na casa dos primos, o clima era de festa e de deboche. Nenel trazia na bagagem um repertório de palavras e expressões do mais genuíno campistês da Baixada da Égua, o que, vira-e-mexe provocava risos entre os engomadinhos. Com naturalidade, porém, rapidamente passou a acompanhar a gurizada nas peladas, nas correrias por pipas e nas rodas de conversa das esquinas do Parque Leopoldina. O Natal estava chegando e não havia deveres-de-casa por fazer; e, pela primeira vez, deu-se conta de que estava de férias.

- De já hojinho a bicicreta pocou peneu. Ô cabrunco!

As matinês do Cine Goitacá, as festas nos clubes, as regatas, os sítios e fazendas dos parentes, os passeios de barco pelo Rio Paraíba, pesaram em suas costas. E ele, que pensava que o mundo era só Carvão na frente, Bangazal no meio e Toco atrás1, nunca mais foi o mesmo. Esse contato com a vida da cidade deixou marcas profundas, mas tinha que acontecer um dia.

Com o Natal, chegaram os parentes dos primos, gente rica do outro ramo da família Azeredo que veio das Minas Gerais.

Um pouco antes da ceia foi o momento de abrir os presentes. Meu Deus, o que era aquilo? Que caixa era aquela? Viu que continha o nome do primo, era dele, mas era grande a curiosidade. Esperou com ansiedade até que Edinho levasse todos para a varanda e abrisse o presente. Não pode ser... O coração disparou, a respiração tornou-se ofegante, engoliu em seco, seus olhos maravilharam-se. A torre de Pisa, aves raras, caras e coroas, animais das savanas africanas... Meu Deus, não acredito! O olho-de-boi! O olho-de-boi! Todos os selos do mundo habitavam a enorme caixa de madeira que a gorda e rica tia mineira de Edinho acabara de lhe dar. E mais, e mais. Série de aviões de Guerra, pirâmides, suntuosos palácios das Arábias, carros antigos. Carros antigos! Era demais.

- É a Torre Eiffel!

Nenel encolheu-se a um canto e permaneceu cabisbaixo. Assim permaneceu durante toda a noite. Como pode ser, Meu Deus, um garoto como seu primo ter ganhado tudo aquilo de uma só vez, sem sequer ter juntado dois, três selinhos durante toda a vida? A gente coleciona as coisas como se estivesse colocando os tijolos de uma obra interminável. Cada peça anexada é uma alegria a mais, um carinho que recebemos, é a sensação de que a vida vai tomando forma. Como pode Edinho ganhar todos os selos juntos? Ele não juntou nada, não recortou envelopes, não pediu a professores, não pediu a ninguém... E lá estavam todos. Que injustiça, meu Deus! E que graça tem isso? Ele não juntou nada! Não é justo, não é justo!

Enquanto matutava a um canto, a festa seguia animada. Os meninos, agora com a novidade dos brinquedos, nem sentiam sua falta. Confraternização, fogos de artifícios, cânticos, comes-e-bebes, nada disso chamava a atenção de Nenel que permanecia isolado, imóvel na varanda, no mesmo lugar onde seus olhos testemunharam a maior coleção de selos do mundo.

No dia seguinte acordou cedo, juntou suas coisas e pediu para ir embora. Seu tio o levou até a rodoviária, fazendo tomar assento no ônibus de Laerte que o levaria de volta a Tócos, com recomendações ao motorista.

- Deixe o menino depois da praça, na entrada da Rua de Seu Inacinho.

Chegando a casa, depois de apertado abraço da mãe, foi correndo apanhar o caderno com sua coleção de onze selos, colocados entre suas páginas. Como legenda, em cada um, estava escrito o dia, o local e o nome da pessoa que lhe deu.

Então, com seu tesouro sob a camisa, foi até a cozinha, abriu o armário, pegou uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos. Atravessou o quintal e foi até o limite do terreno. Embaixo da mangueira acocorou-se, rasgou, uma por uma, as folhas do caderninho e fez uma fogueira.

Enquanto as chamas devoravam as folhas com seus contados onze selos, Nenel chorava às escondidas, copiosamente, como manteiga derretida. Como um frouxo, como uma mulherzinha – teriam dito seus amigos se o vissem naquele momento.

Até hoje não encontra razão para tamanha tristeza.

Gildo Henrique
Enviado por Gildo Henrique em 17/06/2016
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