O enterro de Sinhana

Era dia de finados. Na zona urbana muitas pessoas vão ao cemitério para prestar homenagem aos seus mortos, mas aqui na roça, talvez pela distância do "campo santo", as pessoas guardam o feriado e prestam suas homenagens colocando um singelo ramo de flor junto ao retrato do falecido e por vezes até rezam um terço em sua memória. Depois, para fugir do marasmo entediante que é a vida no campo sem os afazeres do trabalho, os homens acabam terminando seu dia, entre um gole e outro, aqui na Vendinha da Grota. Nessas ocasiões, claro, a conversa sempre gira em torno dos falecidos. E naquele dois de novembro não haveria de ser diferente.

Na mesa ali do canto, "Seu" Tinoco, de parceiro com Manezinho, o que era raro porque os dois não "amarram os burros juntos", jogavam um truco contra Nenzinho e Zé Ninguém. Em respeito à data, as trucadas eram comedidas e sem a gritaria de costume. O Velho Zuza, o Urias e o Zezão, estavam encostados ao balcãozinho, bebericando uma "marvada" e jogando conversa fora. Eu, de meu lado, com um olho no truco, por ser de meu agrado, e o outro na prosa dos que estavam no balcão, fiquei me divertindo, enquanto cuidava do faturamento. Em dado momento Zezão comentou sobre o enterro de Sinhana. Ou pelo menos a tentativa de enterro, quando de sua primeira morte. Estranho isso, não? Primeira morte! Vejamos:

Já relatei em outra oportunidade o causo da Herança de Sinhana, quando ela esqueceu uma mala cheia de dinheiro que só foi encontrada anos depois de sua morte. A morte verdadeira, pois a que me refiro agora é outra história que aconteceu muito antes e que vocês logo vão saber o porquê. O causo é mais ou menos assim:

- Sinhana morreu!

A notícia correu primeiro no arruado da vila e depois ganhou os caminhos e trilhas por entre os morros chegando aos confins dos grotões. De cada sítio, fazenda ou rancho de morador, chegou alguém para o velório, que transcorreu como de costume - As carpideiras choraram a cântaros e a noite se iniciou com os lamentos de sempre. Contudo, não há defunto que resista à dureza e ao frio da madrugada. Assim, lá pelas tantas, quando os galos começaram a anunciar o amanhecer, os penitentes rarearam da sala, buscando um canto qualquer para um momento de descanso e o movimento só voltou com a chegada do Sol. O enterro, marcado para as primeiras horas, foi bastante concorrido. Um terço foi rezado antes de fechar o caixão, como é costume nas famílias cristãs, depois o cortejo seguiu em carro de bois, da fazenda até o cemitério, que fica do outro lado da vila. Tudo dentro dos conformes. À beira da cova o caixão foi aberto para as despedidas finais e, nesse momento, o brilho de um anel, nas mãos postas sobre o peito da defunta, chamou a atenção de "seu" Dico, o coveiro. Após as últimas homenagens o próprio funcionário, dissimulado, ajudou a fechar a urna e baixa-la ao sepulcro.

Logo que os acompanhantes se dissiparam, "Seu" Dico voltou ao local, removeu as poucas pás de terra que havia jogado sobre o caixão, abriu a urna fúnebre e tentou tirar o anel do dedo da defunta. Puxou de um lado, puxou do outro e nada de o anel querer sair. Temendo que alguém o surpreendesse, para ser mais rápido, "Seu" Dico pegou o canivete que sempre trazia na cintura e tentou cortar o dedo da morta. Entretanto, mal a lâmina rompeu a pele, as mãos da defunta se desatrelaram e seguraram firme o braço do coveiro. Ato contínuo, Sinhana sentou-se no caixão e, desconcertada, procurando entender o que se passava, pôs-se a gritar. Se alguém ia dar explicações por certo não seria "Seu" Dico que de um salto ganhou a alameda e em disparada, correu rumo à vila. Sinhana também pulou da cova e correu atrás do homem, gritando para que parasse, mas qual o que, o coveiro já ia longe.

Mais tarde, passado o susto geral, o caso foi explicado: Sinhana tivera um raro ataque epilético que fez com que a dessem como morta. Naquele tempo na roça, longe dos recursos, não havia médico para atestar a morte. Dias depois, Sinhana mandou chamar "Seu" Dico e deu-lhe o anel de presente em agradecimento por ter lhe salvo a vida.