Vagabundo - O Poeta da Rua

No ano de 2001, conheci uma turma enorme em um chat na internet. Aos poucos foram formando-se panelinhas que aumentavam a cada dia. Passamos a ter horário fixo de entrada a ponto de demorarmos às vezes mais de meia hora para entrar na sala B. A “B” era a nossa salinha de visitas, onde batíamos grandes papos e recebíamos os novatos com a frase “seja bem vindo!”.

Pessoas de todos os lugares estavam todos dias nos fazendo companhia. E com palavras de ânimo, ora de tristeza, todos sabiam da vida de todos. “ Como vai, Rei? E seu filho, melhorou? Oi Lu@. Está bem obrigado. E seu pai? Já foi ao médico?” E assim eram os dias, todos preocupando-se com todos.

Eram pessoas de várias cidades de São Paulo, de outros estados e até da Europa. Hospedei vários em casa e conservo essas amizades até hoje Quando conseguíamos marcar um encontro da salinha, era a grande festa. Além do interior de Sampa vir em massa, Rio de Janeiro, Curitiba e Rio Grande do Sul estavam sempre presentes. Rever alguns e conhecer outros, aqueles que já faziam parte da nossa vida e outros nunca víramos antes. Naquela época, não se usava a máquina digital, o messenger não tinha foto e Orkut não existia. Quando alguém tirava uma foto mandava escanear e a mandava por e-mail para os amigos (as) ou amados (as). Era a única forma de se ter a idéia de quem estava por trás daquela telinha.

Nos anos seguintes apareceram nesta sala, Morcegão, Rei, Lu@, Coca-cola, Chaplin, Morena Tropicana, Mammy, Lady, Homem Nu, Jóia Rara e outros grandes personagens.

Uma bela tarde, recebemos a visita do Vagabundo – o Poeta da Rua. Essa figura dirigia um “boa tarde” geral e postava poesias, lindas, mas nunca conversava com ninguém. Não adiantava puxar conversa, ele não respondia. Nos acostumamos com a visita vespertina e agradecíamos os belos poemas, apenas isso. Final de tarde ele apenas se despedia e ia embora.

Passou a ser um amigo, mesmo que não soubéssemos quem era, e aos poucos conseguimos arrancar algumas palavras daquele homem solitário. Já tínhamos feito progressos. Sabíamos que era carioca e advogado, sem família e que morava na rua. Seu quartel general era debaixo de uma ponte onde estava seu computador e poucos pertences. Era uma fantasia. Achávamos graça, mas respeitávamos sua vontade de nunca nos contar nada, ao contrário das amigas da salinha que quando tinham algum problema se lamentavam com ele, sempre recebendo uma palavra de carinho e incentivo. Inclusive eu, recebi palavras de apoio, pois, estava passando por um problema pessoal sério.

Cada vez mais poesias apareciam, e o nosso Poeta, começou a surgir na sua invisibilidade até nas nossas festas. Houve um encontro em São Paulo e tarde da noite algumas pessoas receberam um bilhetinho com uma saudação do Vagabundo – o Poeta da Rua, dizendo haver gostado da reunião e de ver todos bem. No dia seguinte, o assunto era esse o dia inteiro, como ele poderia estar lá? Sem ninguém saber? E isso se repetiu no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e outros lugares onde nos reuníamos.

Para algumas amigas isso virou tortura, todo mundo queria saber mais e mais dessa lenda viva. Meses depois o Vagabundo já conversava amigavelmente com todos, contava histórias de sua infância que o tinham marcado, como a fábula do "Patinho Feio" e escrevia cada vez mais poesias, acrósticos e poemas sem fim. Ele já tinha telefone de alguns, endereço de outros e era um grande amigo nas horas difíceis.

Um belo dia, o Vagabundo me disse que me mandaria um presente. Eu logo quis saber o que era e ele me disse: O que estou te enviando vai lembrar tua infância, alegrias e muito amor, além de um pequeno objeto que com certeza, nunca esquecerás de mim. “A vida é ter fantasias, sabia”? Dá para imaginar a curiosidade que fiquei. E passaram-se mais dois meses.

Uma manhã, me deparei com um grande envelope pardo na porta do escritório. Não acreditei no que li no remetente: Vagabundo – Poeta da Rua. Não sei se fiquei excitada ou histérica para abrir logo e saber o que nele continha. Qual não foi minha surpresa, ao rasgá-lo pela extremidade, voaram por cima de minha cabeça milhares de estrelinhas coloridas, confetes, serpentina e muitos e muitos recortes de corações de papel laminado vermelho, de todos os tamanhos que vocês possam imaginar. Encheu minha mesa, chão , cadeira e arredores...caí sentada, não estava acreditando no que via. Ainda dentro do envelope, muitas poesias dedicadas a mim, acrósticos, tudo enfeitado com decalques de bichinhos, flores, corações, iguais as que usei na primeira e segunda séries do primário. Em cada folha meu nome muito bem desenhado e coberto com purpurina, além de um livrinho, O "Patinho Feio" e um chaveiro de coração vermelho gravado, Vagabundo.

Fiquei olhando durante um bom tempo tudo aquilo, analisando tudo e lendo todas as poesias. Cheguei à conclusão que ele tinha toda razão, tudo ali me lembrava o que ele tinha dito, alegria, amor, infância e pude ficar fantasiando uma série de coisas até alguém me lembrar que aquilo tinha de ser limpo. Juntei tudo e guardei de volta no envelope. Não perdi uma estrelinha sequer. Um pequeno bilhete dizia que aquilo era um segredo nosso. Não entendi direito, mas resolvi ficar firme e não contar a ninguém.

Só pude agradece-lo no dia seguinte e fui tão efusiva que tenho certeza que ele captou o quanto gostei daquela lembrança. E meses se passaram.

As visitas do Vagabundo à sala começaram a rarear e viemos a saber por uma carioca que o nosso Poeta estava doente. Ela foi a única a conhecê-lo pessoalmente e aparecia só para nos dar notícias.

No encontro seguinte, a conversa acabou caindo nele e qual não foi a surpresa da maioria, quando uma das amigas contou que havia recebido um presente do Poeta. Aquilo virou uma confusão. Todas tinham as mesmas coisas, chaveirinho, livro, estrelas, corações e confetes, apenas as poesias eram diferentes. Umas, enciumadas, ficaram bem bravas, outras levaram na gozação, achando legal a forma como ele fez, agradando a todas, sem que uma soubesse da outra. Deram até o nome ao presente de Kit Poeta.

Semanas se seguiram e infelizmente, as vezes seguintes que o Poeta entrou na sala B, teve algumas decepções. Aquelas que ficaram bravas com a história, não mais quiseram falar com ele, o que o deixou entristecido. Não tinha feito por mal. Quis agradar todo mundo, mas enfim...

Falei com ele em umas seis ocasiões antes que sumisse de vez. E em janeiro de 2005, veio a notícia de seu falecimento pela amiga carioca. Fiquei muito triste, afinal, ele já era um amigo e nunca pude retribuir o presente que me enviou. Só agora, tanto tempo depois, posso agradecer aquele momento mágico, escrevendo estas linhas em homenagem ao amigo Paulo Roberto, e, lembrando que tenho o envelope com todo seu conteúdo, guardado com todo carinho. De alguma forma, amamos você, Vagabundo – O Poeta da Rua.