204 – O ANJO DO SENHOR...

Naquela cidade entristecida pela violência, pela falta de paciência entre as pessoas, por tantos distanciamentos, um cego de nascença vagava pelas ruelas pedindo esmola, e lá dentro das suas entranhas um antigo e persistente sonho remoía, latejava...

Enxergar, ele pedia a todos os santos que lhe desse o milagre de enxergar, nem que fosse por uns instantes, que não morresse sem que pudesse ver as coisas maravilhosas que existem, queria ver se tudo era exatamente o que ele sempre sonhara.

Tanto rezou, tanto clamou por este milagre que o Senhor Deus compadeceu e enviou um anjo para ajudá-lo...

– Meu senhor! O que realmente desejas? Perguntou o anjo!

Os pelos dos seus braços arrepiaram, um vento suave e perfumado começou a roçar o seu rosto, pressentindo que as suas rezas seriam atendidas, ousou!

– Que me seja concedido a capacidade de enxergar, mesmo que seja por uns breves momentos, e não preciso de dois olhos, basta-me um que já me darei por contente e bem feliz!

Então o anjo do Senhor arrancou um dos seus olhos e se aproximando do rosto cego, e com muita paciência e jeito foi colocando aquele olho no seu devido lugar, e num repente, num passe de mágica o cego começou a enxergar, no começo a sua visão era um tanto embaralhada, mas aos poucos foi ficando clara e nítida.

Maravilhado, mais maravilhado ficou quando viu o sol, as pessoas, os carros, os prédios, mas se assustou quando deparou com a face do anjo e viu que era do seu próprio rosto que ele tinha retirado aquele olho que agora estava na sua face, depois de muitos agradecimentos, perguntou ao anjo se ele não gostaria de acompanhá-lo em sua andança pela cidade!

E assim foram caminhando e a tudo olhando, comentando e maravilhando, depois de caminharem boa parte do dia pela cidade, o cego finalmente muito cansado estacou, e com muito jeito e carinho retirou o olho emprestado do seu rosto e agradecido devolveu ao anjo!

E o anjo assustado quis saber o por que daquela devolução tão rápida e inesperada se o maior sonho de toda a sua vida era enxergar!

- O que vi tanto me assustou como me machucou, fiquei decepcionado e arrasado, eu não consegui imaginar que havia tanta miséria neste mundo, tanta gente passando fome, tantos homens maus, tanta insensibilidade com o sofrimento alheio, tantas lágrimas silenciosas, tantas pessoas vivendo jogadas pelas ruas, não sabia que havia tantas pessoas se drogando, se mutilando, se destruindo, a realidade é por demais cruel, portanto não quero mais este seu olho, admiro e aplaudo a sua generosidade, mas prefiro viver no meu mundo das sombras e das trevas, neste meu mundo as sensações são mais profundas e já me acostumei a isto, neste breve momento que voltei a enxergar o que vi me revoltou, durante toda a minha vida imaginei que o mundo era aprazível, bem mais amigo e cordial, o que vi me entristeceu profundamente, tão profundamente que preferi a voltar a ser cego, não quero mais ver o sofrimento dos homens!

O anjo do Senhor, abraçou o mendigo:

- Seja feita a sua vontade, espero que tenha tomado a decisão correta, e que não venha a se arrepender mais tarde!

- Não me arrependerei, o seu olho clareou na minha mente a compreensão do nosso destino, finalmente eu compreendi que certas coisas nesta vida, julgadas por nós como um castigo, não é um castigo, mas são momentos de nossas existências, e que temos que vivê-los bem contentes, o meu destino é ser cego, e que isto faz parte da minha evolução espiritual, sendo assim não mais lamentarei a minha situação, e nem mais pedirei o milagre da visão, finalmente compreendi que já é bastante o que me foi concedido, e que foi muito bom tê-lo encontrado com toda a sua generosidade, com o seu desprendimento deste-me a tão sonhada e desejada visão, e isto me assombrou, mas produziu em mim o milagre de ter enxergado a luz que já existia dentro de mim, esta nova visão, nem sei se devo dizer que é uma nova visão, é a mesma que sempre esteve comigo e que por minha ignorância não conseguia enxergá-la, mas agora eu a vejo nitidamente, aprendi a vê-la com os olhos da alma, compreendi e aceitei a minha escuridão, e que esta escuridão é sabidamente muito mais linda e melhor que a realidade das coisas...

E o anjo do Senhor voltou a abraçar com todo carinho o mendigo, tinha cumprido a sua missão com sucesso...

Se despediram...