O CICATRIZ

Há muitos anos atrás, eu trabalhei como professor, ou melhor orientador no Presídio masculino IRT, e no presídio feminino em Tremembé.

Hoje eu tive um problema com o meu carro na estra Oswaldo Cruz, e tive que estacionar o carro em uma marginal que dá entrada para um bairro chamado Mato Dentro.

Já anoitecia, e mesmo sabendo que a região de S.L.DO PARAITINGA, é uma região de pessoas honestas e trabalhadoras, eu juro fiquei temeroso com o que poderia acontecer.

O celular estava fora de área, e vi uma luz há mais ou menos 2 quilômetros de distância de onde eu estava parado.

Eu não entendo nada de carro. Gasolina não era. O carro era praticamente novo, talvez um defeito de fábrica ou então algum problema no alarme.

Tentei ligar várias vezes e nada, a única alternativa era buscar ajuda naquele ponto de luz. Já começava a escurecer.

Durante o período que dei aula no presídio um presidiário de nome Nelson sempre me fazia rir. Ele tinha mais ou menos 1.90 de altura, de cor escura, dentes brancos, que reluziam com aquele enorme sorriso. Tinha uma cicatriz que atravessa o seu rosto do supercílio até o inicio do queixo, o que o transformava em uma pessoa assustadora. Naquele tempo, e isso já faz um bom tempo, 1978 ainda não existia o computador, mas sim as máquinas de escrever REMINGTON E OLIVETTI, as mais conhecidas.

Eu dava aula de datilografia e prática de escritório, eles apreendiam como preencher documentos contábeis e assim poderiam sair dali com alguma profissão. A sala estava sempre cheia, não havia desistência.

Sinceramente eu gostava do que fazia, porém estava ali por pouco tempo, usava o dinheiro para construir uma loja em uma rua movimentada próximo ao mercado municipal de Taubaté.

Após 60 dias de aula, resolvi aplicar uma prova.

Cheguei na sala de aula e expliquei que na semana seguinte eu faria uma prova, e todos que tirassem a média acima de nova eu daria um pacote de cigarro.

Dentro de um presídio você precisa manter sua palavra, caso contrário tem que arcar com as consequências.

Conforme o combinado apliquei a prova. Levei para a casa aquele amontoado de papéis e comecei a conferir as respostas.

Todos tinham ido muito bem. Nelson o cicatriz porém tinha sido o único que tirara a nota 10.

Na semana seguinte eu cumpri o que havia prometido, e levei os maços de cigarros para distribuir entre todos os que tinham conseguido a nota almejada.

Eu como professor não era revistado, e ao passar pelas grades que me direcionavam para a sala de aula fui inquirido sobre o que eu levava. Disse apenas que era as provas e um presente para aqueles que tinham tirado boas notas.

Os guardas riram. Eles são assassinos. Assaltantes de bancos. Ladrões, professor, não são alunos de uma escola qualquer. -- insinuou um dos guardas. Essas palavras entraram por um ouvido e saíram pelo outro. A minha função ali era dar aula, e logicamente de me proteger pois estava sem dúvida em um ambiente hostil.

Conforme eu falava as notas, eu dava um maço ou dois de cigarro. A alegria era contagiante, e naquele momento eu não sabia o motivo.

Cicatriz começou a ficar nervoso, porque eu não falava o seu nome. Levantou-se várias vezes na cadeira.

--- Cadê a minha prova, professor.

Eu propositalmente a deixava por último. Ele era respeitado por todos os outros, que de alguma maneira o temiam, assim como eu.

Finalmente, depois de um bom tempo e chamei.

--- Nelson....

Todos riram.

Em coro eu escutei.

--- Cicatriz.

Ri entre os dentes. E repeti.

--- Nelson Cicatriz, nota dez.

O presidiário levantou-se num salto gigantesco, não só por seu tamanho, mas também por sua agilidade de marginal, assaltante de residências em S.Paulo.

--- Cacete... não disse que eu tinha tirado dez. - e veio ao meu encontro, com os dentes amostra, batendo nas mesas, assustando os seus subordinados.

Dei-lhe seis pacotinhos de cigarros, para os outros no máximo 3. Ele os dividiu nas duas mãos e os ergueu como se tive ganho a COPA DO MUNDO.

A campainha soou e eu sai da sala. Era sempre assim. Eu saia e eles ficavam. Percebi um certo tumulto, mas eu tinha meu tempo contado. Os guardas trancaram a porta. Eu fui saindo, passando grade por grade, até chegar o pátio e pegar o meu carro para ir embora.

Na semana seguinte eu cheguei no presídio sempre no horário marcado. Os guardas vieram ao meu encontro no estacionamento. O diretor do presidio esta querendo conversar com o senhor.

--- Aconteceu alguma coisa?

--- sim. - respondeu um dos agentes.

Caminhei em direção a sala do diretor.

Fui recebido pessoalmente, logo na entrada.

--- bom dia professor.

--- bom dia diretor. O senhor deseja falar comigo.

--- sim. Entre, vamos para a minha sala, o assunto é um pouco complicado.

Entrei.

--- o que aconteceu de tão grave. - perguntei sentando-me na poltrona de couro escuro.

Olhei vários quadros magnificamente pintados, e espalhados pela sala.

Essa é uma outra história que contarei um outro dia. Vamos terminar esta, que já está tomando todo o meu tempo.

--- então professor. O senhor sabe o quanto é querido pelos presidiários, existe fila de espera para participar de suas aulas. Já fiz um pedido para o Estado mantê-lo por mais tempo aqui, pois diminuiu o número de desavenças entre eles, porém, na semana passada assim que o senhor saiu foi um Deus nos acuda.

--- como assim Diretor? - indaguei sem saber qual o erro que eu tinha cometido.

--- pois então... o senhor para incentivar os seus alunos os premiou com maços de cigarros.

--- sim.

--- pois então, cigarro aqui é dinheiro, com cigarro eles usam drogas, fazem sexo, compram alimentos, fazem acordos. Tivemos que tomar o presente de todos, iremos devolvê-los aos poucos, no máximo um cigarro por dia, que só pode ser fumado na hora do banho de Sol.

--- entendi. O que o senhor quer que eu faça.

--- nada... eles estão te esperando, mas por favor, modifique a maneira de premiar os seus alunos exemplares. - percebi naquelas palavras um certo escárnio por parte do Diretor.

Não me preocupei com isso. Fui para a aula, e tudo transcorreu na maior tranquilidade.

Mas o meu carro continuava com defeito, e eu já estava chegando perto de uma casa, não muito antiga, avarandada, uma parte de madeira, e outra de tijolo. Havia luz na varanda e dentro da casa. Alguns cachorros presos em corrente circundavam a casa afoitamente. Parei junto a porteira e a cerca que circundavam o terreno. Gritei.

--- O de casa. Boa noite, estou precisando de ajuda. -

Um vozeirão respondeu lá de dentro.

--- Já vai.

Acenderam se mais algumas luzes. Dois meninos e uma menina sairam na frente. Atrás um senhor de cor alto com um sorriso que reluziu na escuridão da noite.

--- oque deseja?

--- ajuda. - respondi secamente, continuando. Meu carro esta quebrado no início da estrada.

eu não conseguia ver a figura por inteiro, ele foi saindo. Trazia um enorme facão em sua mão direita, e os filhos o seguiam acompanhando os seus passos.

O homem se aproximou, tinha uma cicatriz enorme, que corria do supercílio até o queixo. Os cabelos estavam brancos como neve, um cigarro de palha na boca, torta pelo corte que repuxava os seus lábios.

Foi puro instinto.

--- Cicatriz. - falei em voz alta, olhando em seus olhos.

Ele abriu um enorme sorriso.

--- Pro .. fes.. sor...seus olhos pareciam se encher de lágrimas, não preciso dizer que os meus também.-- ele concluiu.---- Nelson, amigo, agora somente Nelson.

Um dos filhos o puxou pela camisa.

--- pai o senhor o conhece?

Ele abriu a porteira. Gritou com os cachorros que ficaram quietos como gatinhos.

--- Sim... claro que eu conheço, a ele eu devo vocês, a ele eu devo uma nova vida.

A esposa surgiu, mexendo com uma colher de pau, uma panela que segurava fortemente na mão.

Não importa o restante da conversa, o importante é que o meu carro foi consertado, e jantei galinha caipira, com quiabo e polenta.

lembrança.