A Menina e a Moça

A Menina tinha cinco anos. Era pobre, morava na favela, num barraco no alto do morro.Morava com a Moça e a irmã da Moça, sua tia.

A Moça tinha vinte e três. Tivera a Menina com dezoito. Era de origem muito humilde. Mal sabia escrever.

O pai da Menina era um traste. Morou com a Moça, tirou sua virgindade, fez nela um filho, e se mandou. Levou consigo, todos os sonhos da Moça.

A Moça não podia contar com a ajuda de ninguém, a não ser de Deus, e da irmã mais nova.

A Menina era a grande paixão da Moça.

Quando nasceu, foi recebida com todo amor que uma mãe poderia experimentar ao segurá-la pela primeira vez nos braços, trêmulos de fraqueza e emoção, após o parto.

A Moça, era a paixão da Menina.

Criada sem pai, apegou-se à mãe, como quem se agarra a um pedaço de madeira, boiando no oceano. A Moça era seu mundo.

À noite, no alto do morro, da janela do seu barraco, a Menina observava encantada, as luzes da cidade. Sonhava que possuia asas, e que um dia poderia sobrevoá-la.

A Moça, quando abandonada pelo traste, com uma cria nos braços para alimentar e sem conseguir emprego em lugar algum, entrou em desespero.

Por amor à Menina, se despiu de qualquer pudor, moral ou princípio, e jogou-se na vida.

A Moça virou mulher. Mulher da vida. Mulher de vida fácil, como muitos gostam de falar. Mas acredite, de fácil sua vida não tinha nada!

Sustentava a sua irmã e a Menina.

Queria que a irmã estudasse, para não ter o mesmo destino que o seu.

E à noite, quando ia para o trabalho, contava com a ajuda da irmã para cuidar da Menina.

A Menina não sabia o que a Moça fazia. Era melhor assim. Já agüentava olhares e dedos acusadores e condenadores demais. Não suportaria este tipo de desprezo, por parte da Menina.

Pelo menos por enquanto, conseguia despistar a Menina, alegando que trabalhava à noite por ser enfermeira, que cuidava dos doentes em um hospital. Para isso contava com o total apoio e compreensão por parte de sua irmã.

À noite, a Moça tomava um banho, vestia uma roupa limpa, e se dirigia a um pequeno altarzinho cheio de Santos, na entrada do seu barraco. Rezava. Pedia para os seus Santos protetores coragem, estômago e proteção para mais uma noite de trabalho.

Dava um beijo na Menina e pedia para ela se comportar, enquanto estivesse fora de casa.

Repetia este ritual todas as noites, não sentindo mais culpa ou remorço. Tinha apenas um sentimento de resignação. Esta era a sua vida. Não a que escolhera, mas a que lhe fora imposta.

Via na Menina a sua redenção. O perdão pelos seus pecados.

Era janeiro. O Carnaval se aproximava. Resolveu confeccionar com suas próprias mãos uma fantasia para a Menina. Era uma fantasia de fada.

Comprou tecido, linha, paetês rosa claro, da cor do tecido, e umas penas brancas para a parte principal da fantasia, as asas com as quais a Menina tanto sonhava.

Levou aproximadamente um mês para a fantasia ficar pronta.

Os poucos momentos de felicidade que a Moça teve na vida, foram proporcionados, na sua maioria, pela alegria contagiante da Menina.

E no momento em que a Menina vestiu a fantasia pela primeira vez, encantada com suas asas "de verdade" como disse, a Moça só desejou congelar aquele instante, prá sempre na sua lembrança, tamanha era a sua felicidade.

Era domingo. Mês de fevereiro. A Menina estava pronta, com sua roupa de fada, ansiosa para a Moça levá-la ao Baile Infantil, que era realizado todos os anos, pela comunidade da favela.

Antes de sair, a Moça tirou uma foto da Menina.

A Moça e sua irmã levaram a Menina, que mal podia acreditar no tamanho de suas asas, à festa.

A Menina pulou, brincou, dançou. Mostrava suas asas para todos. Chegava para as outras crianças e dizia:

- Viu? Agora eu vou poder voar. Eu sou uma fada, e as fadas voam.

A Moça dava risada, encantada com a felicidade da sua Menina.

O baile acabou.

Elas estavam indo embora, quando começou um tiroteio na favela.

Era a eterna disputa entre traficantes rivais, cada um querendo deter um poder maior.

Todos correram, tentando escapar das balas que teimavam em encontrar uma vítima. E encontraram.

No chão caída estava a Moça. Imóvel, quase sem respirar, em choque.

Embaixo dela se encontrava a Menina. A Menina e suas asas, agora sujas de sangue.

Recuperando a voz a Moça começou a gritar, pedir ajuda, mas era tarde.

De tanto teimar, a bala encontrou em seu caminho, justo a Menina. A Menina. Oh, Deus! A Menina. E suas asas...

Do jeito que estava, vestida de fada, a Moça a enterrou.

No Adeus à Menina, a Moça conseguiu falar:

- Pelo menos isto eu consegui te dar, minha Menina...as tuas asas!

Duas semanas se passaram.

Era noite. A Moça tomou banho, colocou uma roupa limpa, e se dirigiu ao seu altar.

Pediu, como sempre, proteção aos Santos, que agora estavam acompanhados da foto da Menina. Da Menina vestida de fada.

Naquela noite, a Moça foi trabalhar, sob proteção dos Santos e agora também, da Menina.

Da Menina que, enfim, poderia voar...