A maldição
Quando o sol baixou de todo e só sobrou uma fina claridade alaranjada na linha do horizonte, dona Santinha tirou os olhos da janela e colocou sobre o berço de vime, onde um bebê dormia o sono dos inocentes.
Olhando fixamente para a criança, ela se lembrava do amor proibido que vivera, dos anos de flerte inocente que viraram meses de negação incômoda de qualquer sentimento, que por sua vez deram lugar a uma paixão sacrílega e cheia de culpa, desespero, prazer, sofrimento e profanação de lugares sagrados.
Quando soube da gravidez, foi anunciá-la ao progenitor da criança, que tratou de excomungá-la da igreja e enxotá-la da cidade. Vagou sem rumo por algum tempo até que uma alma caridosa lhe ofereceu abrigo e proteção.
Seu estado logo foi percebido pela família que lhe abrigou, uma senhora de idade e seu filho, um homem taciturno e fleumático. A senhora nada perguntou, mas passou a contar-lhe histórias sobre a maldição.
Santinha não acreditava nas histórias, até que em uma noite de lua cheia ouviu os uivos.
“Filho de padre vira lobisomem”, dizia a velha, “e filha de padre vira mula sem cabeça.”
Santinha continuava olhando para sua filha recém nascida, tão doce, tão frágil. Sentiu um aperto no coração ao pensar que era noite de quinta feira, a noite da maldição.
Nunca havia acreditado em lendas e superstições, mas agora não sabia mais o que pensar. Um medo irracional apertava sua garganta com força. Os ponteiros do relógio se arrastavam e Santinha dividia sua atenção entre o bebê e o sumiço do dia pela janela.
Quando pode ver a lua nascendo, prendeu a respiração. No berço, a menininha continuava impassível. Soltando a respiração, Santinha toca de leve o rosto da criança que abre os olhos de repente.
Santinha não tinha certeza, mas poderia até jurar que viu uma luz vermelha e flamejante passar pelos olhinhos da menina antes que ela os fechasse novamente e voltasse a adormecer.