O HOMEM QUE XINGOU DEUS

Naqueles tempos, início do século XX, os patriarcas colonos desejavam ter muitos filhos machos, homens, e que fossem saudáveis e fortes, para o trabalho na lavoura, na produção da família, para dar mais lucro e rentabilidade. Mas Nono Marcos, um italiano de 93 anos, ao morrer, pediu perdão para Deus por ter xingado o seu Criador do céu e da terra muitas vezes na sua juventude. Pediu perdão para a mulher velha companheira de sete décadas por ter praguejado contra ela, contra seu ventre. Disse, no leito de morte, que se arrependia por isso.

Quando casaram, em seguida programaram o primeiro filho. Seria um italiano de olhos verdes e cachos loiros. Com o pé grande e as mãos fortes, imaginava Marcos. Na beira da lareira, bebendo um vinho caseiro, discursava para Natália que tricotava em silêncio, saindo vez que outra para reparar nas panelas no fogão à lenha.

Chegou o dia do parto. Correria das mulheres, irmãs e mãe de Natália. A parteira chegava e tirava a criança de dentro da mãe. Choro de saudável. Palmada. Risos. Marcos aflito na sala. “Seria machinho?” se perguntava. A resposta foi: “uma linda menina”. Marcos não sorriu. Queria um trabalhador pra ajudar na produção. Viu aquela guria se criar nas voltas da mãe dela, na cozinha, fazendo bolos, pães, doces, cuidando da horta e estudando. Mas não desanimou. Passados dois anos chegou o dia do segundo parto. Correria no quarto, panos, bacias, parteira, choro de criança, aflição na sala e a notícia: “Uma linda menina, seu Marcos.” “Puta que pariu! Outra inútil! Vai te a merda, Deus!” praguejou Marcos que saiu batendo portas e fora beber seu garrafão de vinho. As mulheres respeitaram a tristeza do pai da criança, a decepção mais uma vez na mente daquele homem. Ficaram em silêncio mas comemoraram com sorrisos e alegria a chegada de mais uma menina. Cresceu na cozinha e na escola. Ajudava a mãe e passava horas com a professora.

Marcos não desistiu. Veio o terceiro parto. Seria um forte italiano gaúcho. Rezou, mesmo depois de ter xingado Deus, e pediu um macho para a família, sentia-se solitário no meio do parreiral. Correria novamente, bacias e panos, choro de criança, silêncio, veio a parteira, séria, sem jeito, dizendo: “Uma linda menina.”

“Não acredito. Mas o que foi que eu fiz, Deus, para merecer este castigo?” berrou Marcos, chutando a mesinha de centro da sala. “Mais uma mulher nesta casa. Que bucho falhado desta mulher. Vou desistir.” Marcos chorou. Chorou muito, mas escondido, bebendo vinho, enfiado na adega, não queria comer e nem ver ninguém. Só voltaria ao trabalho três dias depois, mal olhando na cara dos empregados, filhos dos vizinhos.

Marcos trabalhava muito, nem via as filhas crescendo, sabia que estavam bem nos estudos, teve o dia de se despedir quando foram, uma a uma, estudar na cidade, depois para as faculdades, despesas a mais no controle do italiano. Vieram os dias das formaturas, as festas, mais despesas, enfim os estágios, os empregos, os maridos, os netos, Marcos virou Nono. Cabelos brancos e novas doenças.

As filhas queriam assumir os negócios, Nono não quis, porém a doença lhe colocou na cama e as mulheres assumiram a produção. Mudanças urgentes, capacitação dos empregados, aquisição de novos equipamentos, criação de novos produtos, uma diversificada agroindústria, um selo próprio, expansão da distribuição, novos mercados, e em poucas décadas um crescimento vultoso da empresa familiar. O sucesso das filhas.

Nono Marcos, cercado de bisnetos, viu a vida acabar, entendendo que seus preconceitos foram superados. Acreditava em Deus, esta era sua crença na vida, e pediu perdão pelos xingões, e morreu rindo das suas atitudes. As filhas, lindas, ao seu lado.

Conto publicado no livro Adeus, Sul. 2014.

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 04/11/2017
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