Conto curto

Ana era uma descendente de escravos, vivia ainda na sombra de seus antepassados, trabalhando em diversas casas por semana, limpando, passando, cozinhando... Não julgava se sua vida era digna, pois acreditava que nenhuma era.

Cada dia da semana uma casa diferente. A modorrenta rotina fazia-a perceber certa frivolidade no tempo, essa invenção louca, pois ele era impossível de provocar mudanças. Tudo se resumia aos dias e às respectivas casas, finda a semana tudo se repetia, incessantemente.

Por alguma reviravolta do acaso, Ana começou a trabalhar no apartamento de Magalhães (isso era nome?). Doutor Magalhães, um homem de meia idade, antipático até não poder mais. Dizia seu Oi e seu Tchau, quando queria ser simpático desejava um bom dia, forçando um sorriso amarelo.

Naquela casa nada se tinha pra arrumar... Ana passava a tarde toda fingindo estar no batente... Tirando pó de tudo, tirava pó de tudo três vezes... E o homem sempre duro, frio, sem alma mesmo, se não estava lendo estava comendo ou dormindo.

Impossível não pegar nojo de uma pessoa dessas. Ana intimamente o odiava, não o entendia. Costumava, enquanto tirava o pó da estante, bisbilhotar seus livros... Deus... Pra que tantas letras e tantos papeis? Não entendia.

Pegara gosto por tentar decifrar as palavras estranhas que encarava. Nunca tinha sido pega em flagrante. Encontrava, por vezes, palavras sensuais, encantadoras, excitava-se com aquilo que parecia sair de um planeta muito distante e pousava ali, na palma de suas mãos.

Começou, aos poucos, a penetrar no mundo daquele homem. Via-o agora como um solitário que vivia muito longe dali, perdido em algum lugar de seus incontáveis livros. Homem estúpido... Ela tinha curiosidade de saber o que se passava em sua cabeça, sempre lendo seus livros de cabeceira.

Muita distancia havia entre aquele homem e ela. Ele era doutor, um intelectual, sujeito fisicamente grande, mesmo que por trás de óculos tão frágeis. Ela, uma empregadinha negra e pequena, possuía membros consistentes, dados ao trabalho. Uma beleza peculiar, certa delicadeza que perturbava em cada gesto.

Certo dia ela vasculhava alguma sacanagem realista que o doutor havia lido, como podiam palavras tão lascivas reunidas em tão pouco espaço? Cada vocábulo daqueles era para ela como uma chicotada na alma. Já havia terminado o serviço, a noite caía lá fora. A tímida luz amarela do escritório iluminava aquele canto do apartamento. Estava definitivamente boba, incapaz de sair daquela pose ridícula, encostada na estante, lendo, tentando ensaiar uma posição de fácil escape para caso alguém a interrompesse. Mas era incapaz de parar a leitura... Estava quente, suas tetas eram como dois dardos de fogo, mirando para algum lugar no aposento.

Foi como um relâmpago a mão que surgiu por de trás dela e apertou com força uma das tetas, enquanto a outra mão deslizava pelo ventre, arrepiando cada pêlo miúdo e se afundando por entre as pernas. Soltou ela, então, um tíbio gemido.

A chuva caía lá fora. A lua cheia transformou-a em animal. Foi assim que soltou seus gritos de cadela e seus miados de gata, que desciam os vários andares do prédio e inundavam cada rua da grande cidade, para que todos evidenciassem o gozo incessante da perversão trivial daquela empregadinha miúda e daquele doutor sem graça de meia idade...

Armênio Pereira
Enviado por Armênio Pereira em 09/09/2007
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