O sumiço de Seu Damasceno - Vendinha da Grota

Nesses dias de pouca chuva é normal que meus clientes compareçam com mais frequência, aqui no balcão da Vendinha da Grota. Sem o temor de serem surpreendidos por borrascas, tão normais ao anoitecer nos dias de verão, eles estendem o “papo” e se regalam em generosas doses da branquinha de meu corote.

Seu Damasceno, capataz da Fazenda Santo Antônio e Almas, não é um cliente contumaz, mas, depois da viuvez, passou a frequentar meu estabelecimento e vez por outra, aparece por aqui. Sisudo, de pouca prosa, se abotoa na mesinha do canto, mais afastada, de onde "assunta" a prosa dos peões e, notadamente, as fanfarronadas de Seu Tinoco, aquele que sempre domina as conversas, contando suas patacoadas do tempo em que era mascate, o último cometa, conforme sua própria definição.

Nesta tarde, em particular, a mesa de truco está formada e Seu Tinoco, como sempre, de arenga com Nenzinho. É normal que os dois estejam sempre de arenga pois, desde aquela malfadada contenda de galos, em que o Pretinho de Nenzinho levou uma esfrega do Vermelhinho de Seu Tinoco, que o mascate não deixa o pobre em paz. Porem hoje, a questão é o truco mesmo! Acontece que é dia da caça e Nenzinho esta levando a melhor. Com as cartas do baralho a seu favor, o peão esta fazendo “gato e sapato” de Seu Tinoco. Em dado momento, depois de uma cartada em que Seu Tinoco, surpreendido num blefe vergonhoso, perdeu seis tentos e ainda teve de aguentar a prosa do Peão, que esbanjando “arroto”, gritava eufórico, incentivado pelas doses da “branquinha” que ele havia ingerido:

- Esse pato “num” é de nada, minha gente! Hoje ele vai saber quem é o “bão”! “Quiria” que Seu Damasceno “tivesse” aqui, “mode" vê isso!!

- Ué... Por falar em Seu Damasceno, alguém ai sabe por onde ele anda? - perguntei, me intrometendo na prosa. Faz tempo que ele não aparece!

- Uai, Seu Zé. Não sei dele não! - respondeu Seu Tinoco, que era quem sabia da vida de todo mundo por essas bandas.

Para não esfriar o truco, não estiquei a prosa. Como disse antes, Seu Damasceno não é frequentador assíduo, mas, também, não é de sumir por tanto tempo. Interrompi o assunto mas, fiquei remoendo com meus botões e ai, percebi que havia dias que não o via em parte alguma.

Nos dias que se seguiram, como Seu Damasceno não aparecia, comecei a investigar seu sumiço. Perguntei por ele aqui no balcão da Vendinha, para as pessoas que passavam, e, até na Vila da comunidade e a resposta foi sempre a mesma.

- O "home" sumiu, Seu Zé!

Como não havia notícia de viagem ou mudança, achei que devia levar o caso mais a sério. Assim, fui à estação saber do Agente se podia ajudar com alguma informação.

- Não, Seu Zé. No trem ele não embarcou.

O mistério só aumentava. Na fazenda, onde o homem tinha sido capataz até se aposentar, também ninguém sabia dele. Voltando à estação, indaguei de Seu Zé Ribeiro, o agente, se tinha endereço de algum parente, então, ele me disse que havia o filho de Seu Damasceno, que eu nem sabia que existia.

- É que o moço foi-se ainda muito jovem, para estudar na cidade. Formou-se e ficou por lá. Nunca mais voltou.

- E o senhor tem o endereço dele? - perguntei.

- Vez por outra, Seu Damasceno passava um telegrama para o filho. Faz tempo que enviou o último mas, posso ver nos arquivos. Talvez ainda tenha.

Tinha! Passei uma mensagem para o moço, informando do sumiço do pai, perguntei se ele estava por lá e pedi que abreviasse a resposta. Era o que eu podia fazer. Agora era esperar o resultado. Enquanto aguardava, a vida seguiu seu curso e as tardes, no balcão da Vendinha da Grota, voltaram à mesmice.

- Cuidado! Damasceno é um homem violento!

Ouvi essa frase varias vezes, sempre que alguém se referia aos seios fartos de D. Rosa, expostos, generosamente, em seus decotes, quando ela, da janela do bangalô, na Vila, apreciava o entardecer, enquanto esperava o marido. Lembra-se de Seu João Modesto? Aquele que ficou com a alcunha de "Oi, Rosa!" — Uma história que eu já contei aqui — em que o tal galanteador levou uma surra de relho de Seu Damasceno?

Mas agora D. Rosa esta morta e Seu Damasceno desaparecido. Hoje, depois de todo o acontecido, sabemos que o velho capataz não tinha nada de violento. Era sim, um homem apaixonado pela esposa. Por ela era capaz de cometer loucuras como a surra que deu em Seu João Modesto que, diga-se de passagem, também era um homem de respeito e que por um único deslize na vida, pagou um preço exageradamente alto. Não estou falando da surra. Essa ele até que mereceu! Estou falando da alcunha que o pobre ainda carrega, mesmo depois de sua morte.

Certa tarde chegou um mensageiro de parte de Seu Zé Ribeiro, o agente da estação. O moço trazia um bilhete dizendo que o filho de Seu Damasceno havia chegado. Sem delongas, peguei meu "pé de bode" e fui à Vila, saber se o tal tinha novidades. Chegando ao bangalô, fui recebido com gentileza e logo o moço foi me agradecendo, pela preocupação com o pai.

- Então, tem notícias de Seu Damasceno? - perguntei.

- Nenhuma! - respondeu o moço. - Vou averiguar por aqui e se não encontrar nada, vou comunicar o fato à polícia, na cidade.

- Muito bem. Se precisar, me encontre na Vendinha. Todo mundo, na Vila, sabe onde é.

Bem, se já tinha alguém da família se ocupando do caso, o melhor era eu cuidar de meus afazeres e deixar o tempo correr. Assim fiz. Dias depois, chegou outro mensageiro. Dessa vez, trazendo um bilhete de Seu Dico, o coveiro do cemitério. Tomei do pedaço de papel e estranhei a mensagem. Dizia que o filho de Seu Damasceno resolveu fazer umas melhorias no túmulo de D. Rosa, que estava em estado deplorável e, também, aumentar mais um "gavetão", para o caso de necessidade, já que o único existente estava ocupado com o corpo da mãe, que mesmo já tendo decorrido tempo suficiente para a abertura do túmulo, precisava de uma testemunha. No dia marcado lá estava eu, pronto para testemunhar. Coisa a que a popularidade adquirida nos obriga.

O sol, escaldante, castigava o grupo de pessoas reunidas ao redor do túmulo, no pequeno cemitério. Ao meu lado, Seu Dico, o coveiro, inclinou se para mim e com um sinal quase imperceptível, chamou minha atenção para a posição da lápide, que estava ligeiramente fora do lugar, deixando à mostra um sinal quase apagado de que a peça havia sido movimentada. Ninguém percebeu nada, mas o experiente coveiro ainda confirmou, dirigindo-me uma disfarçada careta com o canto da boca, no que eu concordei, com um ligeiro balançar de cabeça. Quando o pedreiro responsável e seu auxiliar removeram, com facilidade, a peça de concreto e todos se aproximaram para ver, o espanto foi geral: No "gavetão", as tábuas e os trapos de tecido que restaram do caixão e da vestimenta de D. Rosa estavam caprichosamente empilhadas num canto e, abraçado ao esqueleto da mulher, jazia o corpo de Seu Damasceno, dando provas de que o verdadeiro amor pode, sim, vencer a morte.

Nota do Autor:

A autópsia no corpo de Seu Damasceno não constatou envenenamento nem sinais de violência. A conclusão do legista sugeriu que o morto entrou no túmulo por vontade própria e abraçado aos ossos da mulher, aguardou, pacientemente, a visita da "dama de negro" que o levou para o outro mundo.