Em mim agulhas de bronze

Para começar a tricotar você vai precisar de poucos materiais, que são fáceis de encontrar. Então anota aí: fios, agulhas, e um ou mais novelos de lã, com isso já é o suficiente para começar a tricotar.

Desde que ela entrou na loja, eu notei algo estranho.

Uma menina. Um pouco mais velha que minha filha. Ela ficou caminhando de um lado para o outro tirando agulhas do lugar e colocando no cabelo para segurar o coque. Segurava um espelho no qual olhava-se e após fitar seus detalhes retirava a agulha e colocava no lugar.

Ela era alta, muito, muito magra, tinha bolsas embaixo dos olhos como se não dormisse a dias. Ficou passeando pela loja esfregando novelos de lã pelo rosto. Pedi diversas vezes para ela não fazer aquilo.

Ela tinha um nariz pequeno e pontudo, arrebitado e fino. Tinha uma boca com lábios finos que quase não existiam, sua boca era um corte feito em seu rosto. O dia estava levemente gelado, mas ela usava uma blusinha leve de alças finas. Uma calça de cintura alta e um tênis all star.

Caminhou até o balcão onde eu passava o álcool e arrumava as agulhas especiais.

E perguntou:

– Por que estas agulhas estão separadas?

E perguntou apontando para o vidro embaçado:

– Posso ver aquela?

A agulha em questão era uma feita de bronze com entalhes nas laterais, uma agulha antiga, os desenhos contavam algum tipo de história. E no topo desta mesma agulha havia uma bolinha de vidro. Reluzente e transparente.

Ela segurou a agulha como algo sagrado. Passou as pontas dos dedos nos entalhes e acariciou com cuidado a bolinha de vidro. Não piscou. E então prendeu o cabelo.

Tirou do bolso de trás aquele pequeno espelho de minutos antes. E ficou olhando para ele e virando o rosto.

As bolsas de seus olhos, eram preocupantes. Fiquei pensando quando ela foi embora, o que poderia fazer uma moça como ela ficar acordada a noite toda.

Antes dela sair após ter pago a agulha em dinheiro, eu disse:

– Você precisa dormir um pouco.

Ela não virou, não olhou para trás, apenas parou com a porta semi- aberta, e disse:

– Ainda não.

Para fazer um sapato de lã. Você terá que montar setenta e cinco pontos na agulha e tricotar dez corsões de tricô. Divida deste jeito; Dez pontos em tricô, uns vinte e seis pontos em meia, depois três pontos juntos em tricô, mais vinte seis pontos em meia e outros dez pontos em tricô. Mais alguns pontos.

Tricotar até ter quarenta e um pontos na agulha, fazer o cano. Arrematar e costura.

Eu tenho minha loja a mais de dez anos. Trabalho sempre das nove da manhã as seis da tarde. Nunca cheguei a ganhar dez mil por mês. Mas naquele mês eu ganhei.

Dias após aquela estranha garota passar por lá. Diversas outras vieram. Idades diferentes. Faces diferentes, alturas, corpos.

Jovens mulheres. Mulheres de classe e idosas corcundas entravam e saiam da loja sem parar. Sempre pedindo a agulha de bronze com entalhes e uma bolinha de vidro.

E fazia o mesmo ritual.

Colocavam-na no cabelo, tiravam um pequeno espelho do bolso, da bolsa ou da mochila e ficavam olhando para o reflexo, virando o rosto diversas vezes.

Pagavam em dinheiro. Saiam e paravam na porta por alguns segundo. Presenciei isso tantas vezes que seria difícil de esquecer.

Elas paravam na porta, a porta semi- aberta, ficavam não mais que cinco segundos e saiam.

Eu estava achando aquilo tudo muito estranho.

Mas estava lucrando bem.

Já tinha ouvido falar de influenciadores digitais e como podem levar outras pessoas a comprar coisas aleatórias, então coloquei em minha cabeça que era isso que a primeira garota era. Uma influenciadora.

Já vi casos piores, onde a garotada caia de lugares altíssimos porque queriam tirar fotos como um sujeito que também caiu.

Então em minha cabeça aquilo estava sendo a coisa mais comum do mundo. Mas obvio que eu estava enganado.

Você pode ser uma pessoa cética. Pode ser uma pessoa que acredita em Deus. Mas ninguém acreditou nas notícias. Principalmente eu.

Eu estava no bar quando vi pela primeira vez.

A moça do jornal, aquela de cabelo Black Power, aquela bela morena com vestidos curtos, ela dizia algo sobre homens que vinham sendo assassinas com agulhas de tricô.

Numa das fotos que ela mostrou havia uma agulha de bronze banhada em sangue.

Numa das fotos tinha esse sujeito com a agulha enfiada no ouvido.

Ela dizia:

– A policia não tem pistas de quem possa estar fazendo isso.

E dizia:

– A única testemunha não quer dar entrevista.

E nesse momento a imagem era de carros da policia com a luzes ligadas piscando e iluminando o local do crime, ao lado do policial, de costas estava essa garota de cabelos loiros e coque, alta e muito magra. Ela olhou de relance para a câmera, mas consegui ver os bolsas abaixo dos olhos.

Derramei minha cerveja. E meus amigos riram sem entender.

Toda noite após ver aquela noticia, eu tinha esses sonhos estranhos.

Sonhava que as mulheres que compraram as agulhas estão matando homens por aí. Os sonhos começaram a virar pesadelos. E eu já não conseguia dormir.

O noticiário, dia após dia, começou a encher de noticias e imagens de homens com agulhas de tricô enfiadas no corpo. Um sujeito teve o pescoço perfurado. Um outro tinha os dois olhos arrancados, a imagem mostrava os olhos dele fincados na agulha como um espeto de churrasco. Obvio que a teve borrava. Mas a internet não tem censura.

Cada dia um novo homem aparecia no noticiário.

Foi quando passei a negar a venda das agulha que ela apareceu.

Assim que a mesma garota, alta, magra e sem lábios passou pela porta fazendo o sino tocar, meu corpo gelou.

Meus pesadelos vieram em minha mente.

Neles, essa garota invade o bar e enfia as agulhas em todos lá. Principalmente em mim.

Para fazer um gorro de lã, você tem que saber primeiro que o tamanho dependa da grossura da lã e agulha que pretende usar. No gorro você vai ter de montar setenta pontos na agulha e tricotar em ponto barra dois tricôs e duas meia por cinquenta carreiras.

Ela disse:

– Gostaria daquela agulha linda.

Disse apontando para o vidro embaçado. Apontando para a agulha de bronze dentro da caixa junto das outras.

Com a cabeça eu neguei.

Ela deixou a cabeça cair para o lado, pressionou os olhos e disse:

– Acho que o senhor não entendeu, eu quero comprar aquela agulha.

E neguei mais uma vez.

Ela colocou as mãos sobre o balcão, inclinou o corpo exibindo um enorme decote onde podia ver os ossos saindo por seu tórax por ser tão magra.

Sua respiração estava próxima, seu hálito era a mentolado. Eu disse mais uma vez não. Eu disse que sabia o que estava acontecendo. Eu disse que ela era uma assassina. Que induzia as pessoas a matança.

Eu disse:

– vou denuncia-la.

E disse:

– Saia da minha loja.

Bem devagar, bem próximo ao meu ouvido. Ela cochichou bem baixinho. Ela disse, com a voz suave, disse que nada daquilo era real, que eu estava louco, que na verdade ela sequer nem existia de verdade.

E riu.

Riu e saltou do balcão. Caminhou até a porta, balançando o quadril como uma sambista. Para segurando a porta semiaberta, poucos centímetros antes da sineta ser tocada, ela prendeu o cabelo num coque e colocou aquela agulha de bronze lá.

– você está me roubando? — Gritei dando a volta o mais rápido possível no balcão.

Corri em sua direção. Ela olhou para traz. A sineta tocou, ela sorriu e em poucos segundos não estava mais lá. Em seu lugar estava minha ex esposa.

Em sua mão tinha essa agulha. Agulha de bronze.

Ela disse:

– você chegou bêbado.

Disse no meio de lagrimas:

–Lembra quando havia bebido demais. você disse que não me amava, disse antes de me dar um tapa, você lembra?

Como ela apareceu ali?

Como ela sabia onde eu estava?

Ela disse:

– você sumiu dias depois. Dias em que meu quadril doía. Dias que minha menstruação atrasou. Entre minhas pernas ardia, queimava por culpa daquela noite que veio bêbado.

Ela disse, enquanto levantava a mão. Dizia enquanto segurava minha gola com uma força sobre humana.

Ela disse:

– Eu ainda sinto a dor.

Ela dizia coisas, enquanto o sangue espirrava em seu rosto. Enquanto a loira, parada em seu lado sorria e acenava.

Então ela disse:

– Vá dormir, bela adormecida.