A vigília

O pároco local estava pensando em algo diferente para fazer durante as festividades da quaresma. Muitas ideias passavam na cabeça, mas sempre tinha dúvidas e muitas vezes imaginava que as ideias não dariam certas.

Na manhã, após a celebração da missa das oito horas, encontrou com o presidente do conselho paroquial e os dois comentavam uma nova estratégia diferente para as festividades. A conversa foi tão intensa, que os dois se sentaram no banco da praça e somente terminou quando os sinos da igreja anunciavam a outra missa, que seria celebrada no horário das dez horas. Atordoado, convidou o presidente do conselho para ir à missa, pois logo no final da missa, eles decidiriam o que fazer de novidade.

A celebração foi rápida. O sermão feito ao lado das crianças foi ligeiro e mal demorou cinco minutos. O vigário estava muito apressado e logo terminou a missa. Não demorou muito para sair da sacristia e logo foi chamando o presidente do conselho, de nome Joanas, para a finalização da conversa.

O dia estava bem calmo. O sol era meio forte, pois o verão já havia finalizado e a estação de outono ainda tinha os dias com o sol muito forte. Andando rapidamente, os dois sentaram-se novamente no banco da praça e uma longa conversa se iniciou. Já perto do meio dia, a ideia estava totalmente consumada: Iriam fazer uma vigília na serra que circundava a cidade. Não era muito longe, mas uns dois a três quilômetros da cidade até a chegada do topo da serra. A prefeitura iria fornecer o transporte dos fieis até o local. Pelo número de pessoas, poderia ser de trezentas a quinhentas pessoas.

A ideia estava selada. Durante a semana, a rádio local, as mensagens de facebook, as redes sociais iriam divulgar a vigília. Ele mesmo preparou tudo no decorrer da semana. As músicas sacras, o sermão, as velas, a limpeza da trilha por onde os fiéis passariam, o local de onde teria água e no final, um próspero comerciante patrocinaria um belo lanche a todos. Teriam refrigerantes, pão com molho de carne, biscoitos e até o grupo de jovens faria uma apresentação musical de pelo menos meia hora.

Dona Amélia, uma anciã de cento e dois anos, uma devota séria, muito calma, com uma vasta experiência de vida, antes do hospital na cidade foi parteira e viu muitas crianças nascerem, ficou preocupada. Nos três primeiros dias da semana, ela não conseguia dormir direito, pois algo a encucava. Queria dizer para o vigário, mas faltava-lhe coragem. Tinha medo que o padre lhe xingasse. Ela era uma pessoa muito sistemática. Para ela, bastava um olhar atravessado para perder o dia e a paciência. Brigava, xingava, fala nomes feios e até chamava para o braço. No quarto dia, ou seja, na quinta-feira, pela manhã, pois a vigília seria na sexta-feira, ela se vestiu bem. Calçou o par de sandálias compradas há dez dias na loja, vestiu-se de um vestido branco, com vários desenhos de rosas, colocou o lenço na cabeça, pegou a bengalinha e lá foi rumo à casa paroquial.

Como de costume, chegou, tocou a campainha e logo foi atendida pela secretária. Muito humilde, mas de muita conversa, após os cumprimentos de praxes, brincou um pouco a moça e perguntou se ela já havia casado. Teve da moça a resposta negativa, mas com o sorriso de sempre, pediu para falar com o vigário. No mesmo momento, o presidente do conselho, o Sr. Joanas, chegou e logo colocou Dona Amélia para dentro. A conversa estava muito animada. O vigário logo ofereceu café para eles e contou os planos da vigília. Comentou com Joanas que as propagandas foram ótimas e muita gente já havia comprometido em ir ao evento. A prefeitura ofereceu todos os ônibus e eles dariam várias viagens. Estavam todos felizes, mas a anciã estava muito séria e logo disse:

- Senhor vigário. Eu gosto muito de suas missas. As pregações que o senhor faz são muito culturais, são de grande aproveitamento para os fiéis. Eu sempre vou às missas, como o senhor sabe. A quaresma é muito especial para mim e para todos. É através dos momentos espirituais que existem conversões e muitos pecam, mas logo se arrependem. Tenho uma coisa para lhes dizer, ao senhor e ao senhor Joanas.

- A festa que os senhores vão fazer é muito bonita. Eu estou muito preocupada. Muitas pessoas vão até o alto da serra. Saibam vocês, estamos no final da quaresma. Existem fantasmas, lobisomem, mula sem cabeça e almas perdidas. Nestes meus anos de vida, eu já vi muita coisa lá em cima, quando morava do outro lado da serra. Era caminho para eu ir para a roça e atendi muitos casos de parto. Passei ali diversas vezes. Já vi lobisomem, mula sem cabeça, fantasma, alma penada e todo tipo de coisa. É muita responsabilidade dos senhores levarem estas pessoas.

Os dois ficaram muito assustados com a reação de Dona Amélia. Um olha para o outro. Fazem cara de risos, mas não a contrariam. Sabiam que a velha era fogo na roupa. Então, com a voz serena, o vigário lhe disse:

- Dona Amélia. Nós gostamos muito da senhora. A festa de amanhã será muito bonita. Tire da cabeça. Não existe mula sem cabeça, lobisomem, fantasma. Tudo isso é fruto da imaginação. Nós não temos medo. Vamos até lá para rezar. As almas penadas querem nossas orações. A mula sem cabeça não pode ver, pois não tem cabeça. O lobisomem não pode ver a luz das velas. Os fantasmas correm de nós, porque estamos rezando.

Ao ouvir o que o vigário lhe disse, a anciã ficou furiosa. Respeitou o lugar que estava. Não xingou, mas mordeu por diversas vezes a língua. Saiu sem se despedir e disse à secretária que a mula sem cabeça iria vingar.

Os dois riram da preocupação da senhora. Era normal, mas resolveram cuidar mais dos preparativos da vigília.

Passou a quinta-feira e chegou o grande dia. O vigário acordou cedo. Telefonou diversas vezes para os amigos e chegou a convidar o bispo da diocese. Ele não viria, mas mandaria um representante. Alguns padres circunvizinhos viriam. Estava tudo pronto.

Por volta das cinco horas da tarde, os fieis foram chegando. Os ônibus iam levando as pessoas para o pé da serra. Lá estavam o vigário, os convidados, outros padres, o prefeito, vereadores, um deputado da região. O carro de som anunciava o momento e tocava músicas da campanha da fraternidade. A festa estava iniciando e seria tão bela quanto o planejado.

Joanas chegou perto do vigário e disse, em particular:

- Padre, a Dona Francisca, aquela senhora que tem dificuldades para caminhar, usa uma bengala, tem uma grande massa corpórea, gosta muito de cantar, veio. Como vamos fazer?

- Ela não tem fôlego suficiente para caminhar. Quer de todas as maneiras participar do evento. Se ela não aguentar e cair?

- Calma, amigo. Hoje é o dia da grande festa. Vai transcorrer sem nenhum problema. Ela vai caminhar, ficará feliz, todos vão rezar e este mesmo evento se repetirá por vários anos.

- Que assim seja, respondeu o presidente do conselho paroquial.

Iniciaram-se as festividades. Os padres iam cantando e subindo lentamente até o alto da serra. Os fieis iam acompanhando. Iam rezando, cantando, redimindo dos pecados. Todos estavam com velas e aquela linda linha vermelha se destacava até o alto da serra.

Em um dado momento, Dona Francisca estava acompanhando bem. O cansaço ia se aproximando, mas fazia o possível para estar erguida. A acompanhante sentia que a patroa não estava passando bem. De vez em quando dava uma pisada e ao mesmo tempo cambaleava para um lado. Ora para a direita, ora para a esquerda. Jogava o corpo para frente e também para trás. O lugar era alto, a trilha era estreita. Alguns ramos, mesmo sendo limpos pelo padre, ainda incomodavam os seguidores.

A música estava alta. As pessoas cantavam em coro. Muita euforia. Todos alegres. Ao fundo, dava-se para ver as luzes da cidade. Era um momento tão bonito. As pessoas se libertavam do orgulho. As pessoas queriam e pareciam estar mais próximas umas das outras, até mesmo perto da presença de Deus.

Ouviram um grito.

Todos pararam de cantar. Dona Francisca cai para trás. No impacto, derruba mais pessoas que estavam atrás dela. Vai fazendo um efeito dominó. Perto de uma árvore, ouve-se um relinchar e uma figura semelhante a uma mula se pluma para o alto. Com o efeito da luz, imaginava que a mula soltava fogo pelo pescoço. Lá no fundo, ouviu uma pequena voz, bem fraquinha, que assim dizia:

- É uma mula sem cabeça. Ela aparece no último dia da quaresma. Consigo vem o lobisomem. Fantasma também aparece e alguns sugam o sangue de quem está por perto.

Ao ouvirem a voz, que era da anciã, Dona Amélia, muitos saíram gritando, correndo. Uns caiam nas trilhas e em curto prazo, somente restaram na montanha o padre e o coroinha. Todos correram e brevemente estavam em casa com muito medo.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 25/04/2020
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