Mais um milagre

O típico mormaço de fim de tarde de primavera irradia quentura ao interior do ônibus estacionado defronte o grande Santuário Nacional de Aparecida, desafiando o sobrecarregado condicionador de ar do veículo e provocando importunas gotas de suor a brotar pelo corpo da jovem Ceicinha. Seus magros e longos dedos de unhas pintadas de preto, descascadas e roídas, habilidosamente enrolam os grandes cachos castanhos de pontas tingidas de rosa num improvisado coque para o alto, expondo o comprido pescoço a um pequeno e bem-vindo refresco. Abanando-se apressadamente com um folheto, volta seu par de grandes e belos olhos castanhos como os cabelos para além das translúcidas janelas de vidro ao lado de seu assento. O olhar perdido é a expressão da mente ocupada com o processamento de muitos sentimentos intraduzíveis em palavras, encerrados no âmago do seu ser. A um lustro de completar duas décadas fora do ventre da mãe, a jovem já sente uma responsabilidade típica de adultos em seu próprio ventre.

Como faz quando está nervosa, Ceicinha leva à volumosa e corada boca as suas unhas, a fim de roê-las mais um pouquinho. Sentada ao lado do namorado que, na poltrona do corredor, cochila profundamente sob o boné de aba reta após o longo dia em Aparecida, a garota matuta sobre o segredo que carrega consigo a sete chaves, mas que sabe que logo há de vir à tona.

Nas semanas anteriores, Ceicinha experimentava sensações estranhas em seu corpo. Pensou estar doente, talvez tivesse comido algo que não lhe caíra bem, mas os enjoos que iam e voltavam por dias afastaram essa hipótese. Procurou na Internet e consultou amigas mais velhas, sempre disfarçando sua angústia, e começou a obter informações que foram lhe deixando cada vez mais preocupada. As duas linhas na tira do teste de gravidez, repetidas todas as vezes que fazia a prova com uma marca diferente de teste, não lhe deixaram contente. Como aquilo foi acontecer, tão cedo? Ainda tinha escola, uma vida inteira pela frente… E, já… Mãe?

Sofreu em silêncio por noites, escondendo cólicas, enjoos e a agonia da dúvida, do medo, da repulsa. Levada pelos hormônios e pela inconsequência juvenil, engrossou as estatísticas de adolescentes periféricas grávidas, e essa constatação lhe castigava o coração. Não tardou a buscar respostas, alternativas, soluções, e a Internet não tardou a apresentá-las à desesperada moça: chás, remédios, procedimentos, clínicas, médicos… A palavra “aborto” pipocava constantemente na tela de cristal líquido do celular e na mente da garota, apontando-lhe uma saída de emergência. O medo foi dando espaço à curiosidade, todavia ainda estava ali, pois existiam muitos riscos que iam crescendo dia após dia, no mesmo ritmo daquele ser que carregava no ventre. A adolescente sentia pressa, e, por isso, começou a fazer ligações telefônicas e planos, tudo em absoluto segredo.

Aí veio a ida à Aparecida.

A mãe de Ceicinha não deixou alternativa à única filha, e seu jeito impositivo enfim venceu a rebeldia da menina, que teve de acompanhá-la na romaria de sua diocese. Ceicinha convocou o namorado — o pai da criança, mas que ainda não desconfiava de nada — a fazer-lhe companhia, e passou todo o caminho de ida emburrada, calada, arisca.

A jovem não era de igreja. Bom, era, mas logo cedo arrumou um jeito de não ser mais, sabotando as tentativas da mãe em mantê-la na catequese. Mal recebeu a primeira eucaristia e logo teve sua atenção desviada pelo mundo, ignorando os encontros na paróquia e as missas dominicais, para desgosto da mãe. Bom, vez ou outra ia, só para agradar a mãe, mas a cabeça ficava longe, e qualquer distração de sua progenitora era ocasião para uma espiadela nas redes sociais.

E assim foi indo até este dia, em que finalmente conhecia a grande igreja de Aparecida. Seu ônibus chegou lá bem cedinho, e mesmo antes da alvorada a vista impressionou Ceicinha, mas esta se fez de difícil e foi pisando duro, sempre alguns passos atrás da mãe, namorado a tiracolo, expressão severa na cara e braços cruzados. Entrar na basílica nova foi como entrar num outro mundo. Os olhos aparentemente indiferentes esquadrinhavam cada pedaço, e os ouvidos cravejados de piercings brilhantes como estrelas captavam todos os sons daquele pedacinho de Céu. As paredes belamente adornadas do interior do templo ecoavam a crescente movimentação nos corredores e bancos, cada vez mais ocupados pela constante afluência de gente que ia entrando e trazendo mais e mais vida ao espaço sagrado. Sem se dar conta, a boca de Ceicinha foi se abrindo tão aos poucos quanto os seus braços se descruzavam. O deleite aos sentidos afagava seu espírito sagaz, e pouco a pouco Aparecida ia derrubando os muros levantados por Ceicinha.

As nuvens do perfumado incenso, avolumadas da procissão de entrada até o altar, transportaram a grande assembleia à nuvem luminosa da transfiguração anunciada no Evangelho e comentada na homilia. O Cristo, que brilhou aos olhos de Pedro, Tiago e João, refulgia no alvo disco eucarístico, erguido, alto como a Santa Cruz, das mãos do sacerdote, diante da silente massa que, ajoelhada ou de pé, reverencia o seu senhor. A Ave Maria, elevada à alta cúpula e além, entoada em uníssono por milhares de sotaques, tons de voz e de pele, de cabelos de cores tão variadas quanto as dos olhos erguidos para o alto juntamente com as mãos calejadas, enrugadas ou jovens, ocupadas por terços e devocionários, por pedidos e agradecimentos, cativa Ceicinha a unir-se à oração coletiva. Depois da comunhão, o tempo passa rápido a quem viajou por horas até aquele momento. A missa acaba em alegria, festiva como a música da procissão de saída; mas o redil sequer se esvazia, pois, assim que um rebanho se vai, outro vem testemunhar as delícias do renovado banquete pascal.

Entretanto, o dia não acaba por aí. Dos pórticos da igreja para o mundo, a vista exuberante vai longe, distante, sendo interrompida somente pelas imponentes faces da Serra da Mantiqueira. Dali, do alto das escadarias da basílica, Aparecida do Norte, o afortunado consórcio de Deus com a natureza e o homem, descortina-se aos pés dos romeiros, que logo acorrem a todos os destinos proporcionados pela hospitalidade desta terra que não verte ouro nem prata, mas tão somente o que lhe foi dado: a fé. Visitando a centenária imagem milagrosa, frágil e forte ao mesmo tempo, da mesma cor que a sua, Ceicinha se sentiu muito próxima da Mãe Aparecida. A história da imagem saída das águas do Paraíba, devotada à grandeza do milagre da virgem que engravidou e deu seu “sim” à vida que carregava, jovem, em seu útero, e que transformou sua história e a da humanidade, removeu o frio na barriga habitada por um pinguinho de gente que Ceicinha começava a amar. A impressionante Sala das Promessas testemunhou mais um milagre, pois foi lá que Ceicinha finalmente deu o seu firme e silencioso “sim”, justo na hora em que sua mãe ali deixava uma imagenzinha de Nossa Senhora Aparecida como ex-voto.

O fardo de Ceicinha, enfim, deixava de ser pesado. Desta forma, após muito tempo, sorriu.

Agora, no ônibus, o nervosismo de Ceicinha não era mais de medo, mas de ansiedade: como contaria a novidade? Óbvio que não seria ali, na frente de tanta gente, mas assim que chegasse em casa… Contaria. E seja o que Deus quiser. Sua mãe é rígida, mas é boa. Havia de se alegrar, cedo ou tarde, com a notícia de que seria avó.

Acordando assustado com o ronco do ônibus, que dá a partida para a viagem de volta, o namorado de Ceicinha ajusta a postura na poltrona quando, enfim, recebe o primeiro abraço do dia, dado pela sua bela namorada. Sem entender o porquê daquele repentino afago da menina que andou praticamente muda ao seu lado desde cedo, sorri e beija-lhe a testa. No assento de trás, a mãe de Ceicinha testemunha aquela singela cena de carinho de sua filha pelo pai de seu neto — ou neta.

Sim, ela sabe o segredo de Ceicinha. E sabe, também, que este dia foi crucial para sua família, pois coração de mãe não se engana. Fecha os olhos e agradece, mais uma vez, à Virgem Aparecida pelo milagre da vida que florescia, inesperada, no jardim de sua vida. A razão do ex-voto está no ventre de sua filha, cuja saliência já se faz perceber, embora a jovem ache que não.

E logo a Via Dutra estende seu tapete a esta família e aos demais romeiros, cada qual com sua história de angústias e esperanças, dores e alegrias, pedidos e agradecimentos, na volta para casa. Acima da paisagem épica do Vale do Paraíba, Vésper brilha forte nos céus azuis cada vez mais escuros, testemunhando mais um milagre que aconteceu em Aparecida, cujo fulgor se mistura à miríade de tantos outros testemunhados nesta terra abençoada por Deus.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 12/10/2022
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