RARA DOÇURA NA DUREZA DO SERTÃO (conto)

I-

Quando o dia termina, os pássaros e os homens voltam ao ninho. Por mais que atrelado à natureza crua que dá sustento pelo trabalho, o homem volta ao seu canto, seu lar e segurança. Ele, para às cinco horas em ponto. O dia anuncia a missão vespertina finda, jogando os raios do Sol para trás do Morro do Sofrimento encharcando o seu calor nas águas do Ribeirão Esperança. Que venha do Sudeste o sopro do vento que assovia baixinho, baixinho, aquele refresco à noite que se principiará.

O calejado sertanejo recolhe os apetrechos que lança às costas cada vez mais arqueada: uma enxada e um facão enfrentador de cascavel (se ela aparecer sorrateira chacoalhando guiso de uma nota só); um machado curto arrancador de tocos traiçoeiros e uma foice afiada de abrir picadas no mato baixo e espinhento como as agruras do povo dos Cafundós dos Desassistidos.

Caminha de volta... Tem o rumo certo de passos lentos e lerdos impregnados pelo cansaço. Sente os músculos não se combinando mais com os ossos, que lutam com sacrifício para manterem todo o corpo em ação. Vez ou outra, seu coração destrambelha a bater doidices, obrigando-o a se sentar à beira do caminho até os batimentos se harmonizarem, novamente, com o mundo. O bom é que nas paradas obrigatórias volta a sentir o aprecio, desde moço, do cheiro do capim que margeia o estradão; o danado é cheiroso mesmo que secado de estiagem.

II-

Na sua casinha de amarelo desbotado pelo Sol cruel, caiada de poeira pela falta da chuva, alegra-se a jogar os trens de trabalho ao chão. Suspira o livramento do mesmo peso agora sempre mais pesado. Enche a bacia d’água areada, lavando a primeira leva do suor impregnado.

É-lhe rotina...

Sagrado ritual...

Começa pelas mãos e os braços, o rosto e o pescoço. Enxuga-se parcialmente para deixar umedecida a pele enrugada pela experiência de ser forte diante dos sofrimentos e torrada pelo calor. Faz tudo de olhos fechados evitando olhar no reflexo d’água a feiura do seu envelhecimento.

Senta-se no pedaço de tronco. Antes de requentar o feijão de ontem e fritar na banha um bom naco de linguiça paio, acende a palha enrolada com bom fumo para baforadas por meia horinha. Um momento sagrado: minutos depois de uma hora observando a fumaça subido como que levando preces secretas ao céu, como a defumação nas procissões elevando a crença dos fiéis.

Levanta-se...

Hora da boia...

Janta como rei...

Depois da palitada nos raros dentes, lava-se na tina de banho. Capricha nas esfregas para ajuntar as mazelas pelos olhos-feiticeiros dos maldosos para que a benta e divina água o descarregue de desventuras. Enxuga-se, sem demora, evitando pé-de-vento que sopra frio nesse horário: Na sua idade, qualquer descuido é tosse das bravas.

Exatamente, quando a Lua se apruma no firmamento jogando lume sobre a imensidão das saudades, veste-se de camisa branca e calça bege, ambas da missa de domingo.

III-

De Alpargatas no pé, colhe doze flores do terreiro. Delas faz maço-de-mão e se senta numa das duas cadeiras, únicas, solitárias no puxadinho com telha de barro pedindo reparo.

Cheira as flores colhidas que tem hoje mais das brancas. Na região, a estiagem descolore as coloridas e fortalece as brancas. Cheira também, aproveitando de manias, o seu sovaco para a certeza de que a aqua-velva ainda perfuma pelo frasco ser velho. Está pronto! Lança o olhar com oitenta e oito anos de vida ao estradão para aguardar, como faz nos últimos quarenta e cinco anos, a volta da Sebastiana que o trocou por outro. Seu aguardo é precioso, teimoso e esperançoso.

Como se lembra da beleza de Sebastiana...

Tem certeza de que ela voltará um dia pedindo perdão, como a mesma certeza de que todo ano, a cada seis meses, o Padim Ciço manda a chuva para plantar o seu roçado de milho. E, quando ela pedir o seu perdão, prometeu apenas lhe entregar as flores e a abraçar tão forte para nunca mais se separarem...

Ele prometeu com esse gesto de nada dizer para que o Amor é que fale o que bem entender.

IV-

O seu corpo reconhece-se cansado, evitando as esperanças de ainda ter destino a cumprir. Os seus olhos, não! Cada vez mais perfeitos. Talvez, seja presente de Deus pela tenacidade do batalhador de vida afora. Por causa da sua perfeição alcança vista lá no fundão do estradão, bem onde a terra torrificada une-se ao horizonte no estrelado do céu.

De repente...

Três cadentes riscam o azul, cada uma no seu tempo. Ele sorri pela oportunidade de poder fazer três pedidos.

Pedir o quê? Anos eternos para um corpo cansado? Para quê?

Chuva para no lugar da estrada ser rio? Isso é papel de Padim Ciço e, com santo sagrado, não se mete, não!

Pedir a benção de ter Sebastiana de logo e mais rápido? Claro... eis um pedido justo. À justeza da pressa pelo amor não é pecar. Ela poderia aparecer lá, correndo, levantado poeira, abrindo braços ao seu abraço tão esperado. Está feito, é o seu pedido e que a benção seja as rabichas das estrelas caídas.

Ajeita-se na cadeira...

Apruma-se...

Esperança-se ainda mais... Afinal, padre Antuninho promete, missa por missa, que Deus atende pedidos verdadeiros. Sorri. Firma de vez seu olhar.

Espicha o seu esperar...

Mais que nas noites passadas...

Afinal, teve três cadentes de uma só vez...

Vai espichar o tempo, sim! Mesmo que o orvalho da noite surre sem dó o seu velho esqueleto, pois com seca brava até orvalho serena espinhando.

V-

Surpresa bem na hora da Lua no zênite, lumiando seus cabelos cada vez mais ralos...

Do azul do céu, lá, bem no encontrão com o chão, joga-se à Terra um vulto. De branco... Firma o olhar limpando os olhos com a manga da camisa. Vulto branco de mulher.

Será ela? Eita! que o seu coração ameaça destrambelho. Inspira fundo para ajudar o danado voltar ao normal. Consegue...

Logo, outro vulto igualmente jogado. De branco, também. De mulher, também. Nem bem pestanejou a surpresa, um de branquinho, toquinho, de andar igual.

“Poxa! que noite. Das estrelas caídas brotou três mulheres? Pode ser Sebastiana? Pode até... As outras duas, certamente, companheiras acompanhantes, pois não é bom alvitre mulher sozinha na boca-da-noite alta.”

Que distância separa a esperança da certeza?

Muitas...

Léguas...

Anseia-se...

A caminhada delas é lentidão, mas dá para ver as mulheres e a jovenzinha. Vestidas de branco.

Aproximam-se...

Não é a amada...

Joga no terreiro as flores como a derradeira esperança...

Que faz pela sua banda três mulheres?

VI-

— Boa noite! Podemos achegar?

— Sim! Bem-vindas! com a benção de Padim Ciço.

Uma mulher com seus menos de cinquenta anos e uma jovem e bonita senhora segurando pelas mãos uma esperta menina.

— Eu falo com Zé Aloísio?

— Sim! Quem dá a honra do proseio?

— Sou Jerusa. Essa é minha filha Mariana e a neta Clarinha.

José, observa as três sem parar.

— Prazer. Querem um cafezinho? Tá mornando na beira do braseiro, mas dá pra tomar. Que fazem três mulheres pela noite escura? É perigoso...

Jerusa toma a dianteira:

— Não dava pra adiar mais. Tinha que vir hoje, pois a angústia destrói o juízo. Sem o perdido de rumo achegaríamos antes. Trago notícias da Sebastiana. Foi promessa no leito de morte. Tinha que cumprir. É precisão no cumprimento. Mainha faleceu há três dias e me incumbiu de recado.

Ele perdeu noção de pronúncia. Foi do nó na garganta: Nó cego, dolorido, desesperanço só.

— Não faça desespero das minhas palavras...

E suspirando:

— Ela pediu que trouxesse pedido de desculpas. Está dado. Promessa finda. Meu coração tranquilizou.

O velho sertanejo só respira é por explicações...

— Eu, filha e neta, ficamos angustiadas com a revelação da mainha no momento final. Confessou que, quando o deixou pra viver com o Francisco, sem saber, levava eu na barriga. Ficou desnorteada. Porém, Francisco me aceitou como filha. Ele gostava demais da mãe. Cuidou de nós por todo esse tempo, até morrer há dois anos. Pra mim, ele era o meu painho. Eu não sabia do senhor!!

Ela pausa por soluço. Um só. Dolorido:

— Então, o senhor tá diante da sua filha, neta e bisneta. Nós três não aguentava a tristura da distância. Tínhamos que pedir a benção. Não queremos ficar sem pai, sem vô, sem bisavô. Aceita nós na sua vida, por favô!

Ele nada disse...

Levantou seu corpo, agora dolorido pelas emoções. Passou por todas elas indo ao terreiro. Apanhou com calma as mais belas flores, fazendo três maços-de-mão. Dirigiu-se a elas ofertando as flores e dando um beijo em cada uma, molhando com lágrimas a cada rosto:

— Bem-vindas, minha família, pra minha vida!

Convidou-as a entrarem, prometendo fazer uma merenda, pois é pecado dormir com fome depois de longa jornada. Prometendo preparar redes para pernoite. Prometendo reconhecer cada uma como o seu mais precioso tesouro.

Fez em silêncio, afinal, que o Amor fale por ele o que bem entender.

Quando elas dormiram, Zé Aloísio da rede sentindo falta de sono misturado com alegria e emoção, fungou o cheiro de terra molhada. Eis que chegou a chuva, antes do tempo, mandada pelo Padim Ciço. Certamente o santo, lá junto do Pai, estava alegre demais chorando pela união da família.

Sorriu...

Suspirou fundo na mais quietude possível para não as acordar.

E, nessa paz, balbuciou para si mesmo:

— Eita! meu Deus e Padim Ciço, que vai ser o ano mais feliz da minha vida!!

Arabutã Campos
Enviado por Arabutã Campos em 17/06/2023
Reeditado em 24/06/2023
Código do texto: T7815849
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